Estudo sobre o homem ciumento
Crónica publicada na GQ
No final da adolescência tive um amigo que, volta e meia, sem que a conversa se prestasse a tais conjecturas, jurava que se um dia fosse traído pela namorada, matava os dois, a rapariga e o amante. Ninguém podia duvidar da certeza dos seus intentos porque, apesar do ambiente descontraído onde geralmente nos encontrávamos, anunciava-os com a resolução inequívoca de quem escolheu um destino. Os anos passaram. Há tempos reencontrei-o. Era uma quarta-feira. Ele, divorciado e com uns quilitos a mais, passeava no centro comercial com o filho, fruto único do casamento com aquela remota namoradinha. A conversa foi de circunstância. Cumprimentámo-nos com um abraço, despedimo-nos com um aperto de mão. Não sei se para o fim daquele casamento terá concorrido alguma traição, mas quaisquer conflitos existentes terão sido resolvidos num grande sossego de conservatória.
Na pequena parcela de sociedade em que vivo, aquele homem de quem as mulheres do bairro diziam, com admiração e terror, que era “muito ciumento”, extinguiu-se. Era produto de uma época e de uma cultura de que o meu amigo, quando verbalizava os seus desígnios, terá sido dos últimos herdeiros. Era uma estirpe um tanto pré-histórica, ingénua e terrível, que desconhecia o pudor e o cálculo que hoje impede certas afirmações coléricas. Os seus descendentes refinaram-se e o homem ciumento, que nunca deixou de existir, passou a ser de um único género, o atormentado a quem o ciúme dilacera e a impossibilidade de o manifestar desabridamente mortifica.
Mesmo que o não saiba, o homem ciumento moderno descende de Pózdnichev e de Bentinho, personagens respectivamente criadas pela imaginação de Lev Tolstói e de Machado de Assis. O conde russo explicava, pela voz da sua criação, porque é que numa sociedade cheia de espartilhos de salão o ciúme é mais cruciante: “Uma das coisas mais torturantes para os homens ciumentos (ora, na nossa vida social, todos os homens são ciumentos) são determinados convencionalismos mundanos que admitem uma grande e perigosa proximidade entre o homem e a mulher. Seremos objectos de gozo se tentarmos impedir uma tal proximidade nos bailes, ou entre o médico e a paciente, ou em sessões de arte, de pintura e, sobretudo, de música.” A proximidade não pode ser contestada sob pena de o ciumento revelar, inadvertidamente, que a traição já aconteceu. Não na realidade, mas na sua imaginação, o lugar onde acontecem mais coisas ao ciumento.
Muito antes de se casar com Capitu, Bentinho sofre com as fantasias mórbidas do seu ciúme. Desterrado no seminário, onde chora abundantemente pela separação, Bentinho recebe notícias de uma Capitu alegre. Ele sofre, ela ri. Na ausência da amada, na discordância de estados de espírito, medra o ciúme. Uma Ponta de Iago é o título do capítulo, pagando o tributo a Shakespeare. Uma frase transtorna-o particularmente: um abstracto “peralta da vizinhança” inquina-lhe o coração. “Separados um do outro pelo espaço e pelo destino, o mal aparecia-me agora, não só possível, mas certo.” O facto? Só um, a alegria de Capitu. O resto é o trabalho da imaginação no tear do ciúme: “se ela vivia alegre, é que já namorava a outro, acompanhá-lo-ia com os olhos na rua, falar-lhe-ia à janela, às ave-marias, trocariam flores e…”E… sentado numa carruagem, a viajar para longe da mulher, Pózdnichev também não controla a imaginação: “quanto mais contemplava aquelas cenas imaginárias, mais acreditava na sua realidade.” Sem provas, basta-se com um indício incerto, um sorriso “quase despercebido” trocado entre a mulher o suposto amante.
Obrigado, pelo temor do ridículo, a silenciar as suas suspeitas, o ciumento é torturado pelos instrumentos da imaginação, da dúvida e da culpa. Porque, sem factos que provem o delito conjugal, há a hipótese de a mulher ser inocente ou, ainda mais tenebrosa, a possibilidade de ter sido o ciúme a desencadear a tragédia. No final de Dom Casmurro, surge a advertência tardia: "Não tenhas ciúmes de tua mulher para que ela não se meta a enganar-te com a malícia que aprender de ti.” Pózdnichev sabia-o bem: “Vi logo, nesse primeiro encontro, que os olhos dela tinham um brilho especial e, pelos vistos com a ajuda do meu ciúme, estabeleceu-se entre eles uma espécie de corrente eléctrica […]”
Ao imaginar a traição, todo o ciumento deseja secretamente que o acto imaginado se concretize. Pode, então, planear a vingança homicida, como Bentinho (“A vontade que me dava era cravar-lhe as unhas no pescoço, enterrá-las bem, até ver-lhe sair a vida com o sangue…”), ou perpetrá-la, como o marido de A Sonata de Kreutzer, (“sabia que ia assestar o golpe abaixo das costelas e que o punhal entraria por ali.”). A alternativa mais civilizada será ainda passear tranquila e divorciadamente com o filho num centro comercial suburbano numa quarta-feira à noite.