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Circo da Lama

"Se ele for para a Suiça, não lhe guardo as vacas", David Queiroz, pai de António, vencedor da Casa dos Segredos

"Se ele for para a Suiça, não lhe guardo as vacas", David Queiroz, pai de António, vencedor da Casa dos Segredos

Circo da Lama

16
Jul18

Como arde o corpo de um inocente

Bruno Vieira Amaral

Aconteceu há muito tempo, mas lembro-me bem porque foi no dia do meu décimo-segundo aniversário e nos nossos aniversários, no meu e no dos meus irmãos, os pais levavam-nos sempre em passeio, fazíamos um piquenique nas redondezas, julgo que em sítios que o pai conhecia desde criança e que tinham nomes como Sweetwater Creek, Woods Valley ou Basket Creek e outros assim, e ele costumava contar uma história que se passara naquele lugar, às vezes coisas que lhe tinham acontecido, parvoíces a que só os meus irmãos achavam graça, coisas de rapazes, com fisgas e armadilhas e correrias, e ele, ao ver que eu não sorria, beliscava-me a bochecha e dizia-me: “ri-te lá, parvinha”, e eu ria-me contrariada e depois com gosto e um pouco zangada comigo mesma porque o truque resultava sempre; noutras vezes, contava histórias que tinha ouvido, e punha uma cara séria e tremenda de contador de histórias, e eu sabia logo que era patranha, os meus irmãos é que não, mas escutávamos todos em silêncio porque eram histórias de meter medo, violentas e assustadoras, e ouvir o pai a falar sobre homens degolados por bandos de salteadores ou de crianças raptadas de que só se encontrara uma peça de roupa ou um boneco dias depois enchia-nos de medo e reconfortava-nos porque enquanto o pai nos contasse aquelas histórias nenhum mal nos aconteceria; a mãe é que não gostava nada e se às vezes só o censurava com o olhar ou com uma palmadinha na coxa enquanto nos espiava pelo retrovisor, quando, no seu entender, ele ultrapassava certos limites – como quando o pai contou o caso da filha dos Carson, e nem sequer sabíamos quem eram os Carson porque nunca os tínhamos visto e eu, pelo menos, nunca conheci ninguém dessa família, mas senti muita pena e chorei muitas lágrimas por esses infelizes que talvez nem existissem por causa do que o meu pai dizia que tinham feito à filhinha deles – falava com rispidez, “queres parar com isso de uma vez por todas?”, como nunca falava com o pai nem com ninguém, e ele, como também não era da sua índole, calava-se, “bem, meninos, já sabem tudo o que há para saber”, e nem os pedidos histéricos dos meus irmãos para que continuasse o demoviam; eu também queria que ele contasse mais, mas não me atrevia a pedir, porque não queria parecer infantil e ainda era porque lembro-me bem que tinha vergonha dos meus pensamentos e dos meus desejos, não que na altura os soubesse distinguir, todo o meu conhecimento era o da escola dominical e das lições da mãe, “se duvidas que é pecado é porque é pecado”, pois os pensamentos inocentes são “límpidos como as águas de um regato e turvas são as águas da dúvida e do pecado”, isto dizia o reverendo Cranford, e a mãe, por hábito e profilaxia, repetia-lhe as palavras, ao que o meu pai sorria porque temia a Deus, mas achava vãs as palavras dos homens, mesmo as de homens tão bons e piedosos como o reverendo Cranford.

Naquele dia, já tínhamos acabado o piquenique e cantado os parabéns, regressávamos a casa por uma daquelas estradas que só o pai parecia conhecer, pois nunca nos cruzávamos com ninguém, quando o carro parou e, apesar dos esforços do pai para remediar a situação, ele que gostava de passar horas de volta do capot aberto e sujar as mãos de óleo mesmo que de mecânica nada soubesse, não voltou a andar, “tenho de ir à estação de serviço”, a sete milhas de distância, eu era para ficar lá com a minha mãe e os meus irmãos, mas recusei-me, disse “vou com o pai” e assim partimos os dois, estrada fora, ele a distrair-me com canções e adivinhas, “a Sally tem duas no mesmo sítio…”, e eu, “essa é velha, a letra L”, até que após uma hora de caminho vimos muitos carros parados à beira da estrada, e deles saíam famílias inteiras, famílias inteiras caminhavam bosque adentro, para lá das árvores, e, curiosos, fomos atrás delas, atrás da grande multidão a cada passo maior, eu a segurar a mão do meu pai, a andar como que hipnotizado, sem reagir aos empurrões de mulheres e adolescentes, rapazes e raparigas pouco mais velhos que eu à procura do melhor sítio para ver aquilo que ia acontecer, “o que se passa aqui?”, perguntou ele a três pessoas que o olharam como se fosse louco e não carecesse de resposta, até que, sentado num toco, vimos um velho a rasgar as páginas de um livro antigo, tranquilo como se já lá estivesse antes da chegada da multidão e por ali fosse continuar depois da debandada, e foi ele que nos disse que tinham vindo para queimar o monstro, e então vimos homens com latas de querosene e tochas e tábuas e estacas e galhos e restos de postes a abrir caminho, afoitos como se voltassem de uma jornada de trabalho, e atrás deles vinham outros a arrastar um homem vendado, um negro, que logo acorrentaram ao tronco de um pinheiro numa clareira e, aos urros da gente que assistia, arrancaram-lhe as roupas, camisa e calças, sapatos não tinha, e à volta das partes íntimas enrolaram-lhe um pano e aos pés dele amontoaram as tábuas e estacas e galhos e restos de postes, e os miúdos, incitados pelos mais velhos, cuspiram-lhe na cara, esmurraram-no, deram-lhe bofetadas, atiraram-lhe pedras e injuriaram-no. Eu mal o conseguia distinguir por entre as fileiras de corpos, mas ao longe não me parecia a besta de que fala a Bíblia, nem monstro nenhum, apenas um rapaz amedrontado, um anjo negro, com o rosto cheio de lágrimas e sem chorar.

Como que ao som da trombeta invisível de um dos anjos da Revelação todas as vozes se calaram e daquele silêncio universal e maligno emergiu um homem grande como um rochedo que tirou do bolso uma navalha e abriu-a e chegou-a ao rosto do negro que só então acordou do estupor em que até aí se encontrava e, olhando em volta e não vendo misericórdia nem compaixão, pediu que fizessem o que tinham de fazer, que fossem rápidos na vingança e jurou a sua inocência e afirmou que, por ser inocente, não temia a morte e que bem depressa entraria no Reino dos Céus onde poderia louvar o Senhor pela eternidade, ao que alguém gritou “blasfémia!” e o homem que segurava a navalha, movido pelo grito de acusação, cortou-lhe as duas orelhas e mostrou-as à turba, que rugiu como uma besta que se erguesse do abismo, e logo sobre o negro se precipitaram homens enfurecidos e ávidos e seguraram-lhe os braços enquanto lhe decepavam os dedos de cada mão e de cada pé, e o sangue das feridas escorria pelo corpo do negro e manchava as roupas deles e dos seus filhos, então retiraram-lhe o pano que lhe cobria as partes íntimas e o homem que lhe cortara as orelhas golpeou as suas coxas e o meu pai virou-me para trás para que eu não visse mais nada pelo que só ouvi os gritos de pavor do negro e tudo o que testemunhei foram as centenas de rostos deformados pelo prazer mórbido do sangue, todos os rostos, até os das crianças, que os pais seguravam pelos ombros para que assistissem a cada segundo da agonia do monstro, participavam dessa felicidade bestial e eu e o meu pai já nos afastávamos, temendo por nós, quando ouvi a voz de um homem a pedir que não despejassem querosene a mais para que o negro não ardesse “como um fósforo”, como um fósforo foi o que disse, como se já tivesse visto mil vezes o corpo de um homem a arder, “queimem o preto e espalhem as cinzas ao vento para que não ressuscite no dia do Juízo Final!”, ouvi uma mulher dizer, uma senhora tão devota quanto a minha mãe, e enquanto o meu pai me levava pela mão para longe daquele pesadelo, para longe daquela visão de fogo e sangue, pude ainda olhar para trás, como a mulher de Loth, e ver o momento em que as chamas lhe lamberam as pernas, e ouvir o desgraçado anjo a gritar “Deus do céu!” e era como se os seus lábios libertassem nem injúrias nem impropérios, mas o mais doce dos salmos, num protesto pela sua inocência e com a promessa de contar as maravilhas do Senhor mesmo após a morte e, naquele segundo, nunca mais pude esquecer, vi do seu flanco em chamas uma pomba a desprender-se e a levantar voo, subindo, subindo e subindo até não ser mais que um rasto de fumo nos céus.

Quando despertei, vi o azul do céu e o ocre da ladeira e o verde da erva agitada pelo vento, a boca sabia-me a ferro e a sangue, com a língua tacteei as pedrinhas que a preenchiam e ia para tossir quando senti a dor como se uma lâmina de aço me rasgasse a carne e me quebrasse as costelas e me roubasse o ar, virei a cabeça para o lado em busca de repouso e através das ervas vi o fumo e, em baixo, as chamas e, para lá das chamas, um pequeno corpo debruçado na janela do nosso carro e então fechei os olhos e veio até mim um anjo negro de asas flamejantes que me disse com a sua voz de cítaras e de lágrimas e de sal que Deus permitira que da minha casa só eu sobrevivesse para dar testemunho destas coisas que vi e sonhei.

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