O desconcerto do senhor Chico
Crónica publicada na GQ de julho/agosto 2018
Por razões económicas e de temperamento, mais estas do que aquelas, consigo lembrar-me sem grande esforço de todos os concertos a que assisti na vida. O primeiro, levado pela mão de um tio e financiado pela generosidade de um primo, foi o dos GNR em Alvalade, no dia 10 de outubro de 1992, com um Rei Reininho (não é gralha), o maior poeta português ao vivo, como lhe chamou Paulo Varela Gomes, a fazer de Sioux e de novo rocker, ora desesperado como um Ian Curtis, ora fêmea como um Ney Matogrosso. Anos depois, iniciei-me em festivais selvagens no primeiro dos Sudoestes, sem outro objetivo que não ver os Blur. Vim de lá com o bónus de um concerto memóravel dos Suede – a voz de Brett Anderson a ecoar pela estrada escura até à Zambujeira – mas nunca repeti a experiência bucólica porque a minha ideia de liberdade é mais urbana do que banhar-me num canal de rega, dormir sob os pinheiros e defecar ao ar livre.
Foi por essa altura, reconheço, que estive mais perto de me render ao ritual dos concertos. Em 99, na Aula Magna, invadi, juntamente com outros entusiasmados, o palco onde os The Gift ainda tocavam, num delírio de bacantes adolescentes. Do cabelo de Sónia Tavares roubei uma pena que o enfeitava, pena essa que, como outras penas, guardei durante anos como se fosse a relíquia de uma santa. Foi também nesse ano que assisti ao melhor concerto da minha vida, perto da praia do Barreiro, num palco com toda a rudeza das empreitadas municipais e menos de uma dezena de corajosos – menos certamente do que os músicos em palco – a fazer de público. Lá em cima, JP Simões arrastava atrás de si, com a força cega de uma locomotiva, os seus cúmplices dos Belle Chase Hotel. Terminado o concerto, convivi com a banda no contentor que lhes serviu de camarim, colhi pérolas de sabedoria instantânea, alguns autógrafos e o sorriso da violinista.
Porém, nem a agradável sensação de euforia gregária, irracional, ditirâmbica me fez abandonar muito mais vezes o conforto do lar para assistir a concertos: vi os Blur em Lisboa para prestar tributo ao adolescente que fui e para ver Charles Aznavour paguei uma pequena fortuna, ainda assim insuficiente para saldar a minha dívida eterna. Há dias, uma vez mais, violei o meu temperamento, abdiquei dos meus fracos princípios, aliviei-me de uma quantia indeterminada de euros e fui ver a voz e ouvir o corpo de um septuagenário de olhos de cor indecisa como o mar, às vezes verde, outras, azul. Dez minutos depois da hora marcada, o senhor Francisco Buarque de Hollanda entrou em palco, vestido de preto (pelo menos assim parecia ao longe), samba e solidão. Cantou, tocou viola, gracejou, pôs um chapéu de malandro e, malandro, ensaiou uns passos de dança, pôs um sorriso de criança e, carioca, sorriu com a alegria de um pinto no lixo. Depois mostrou aos homens ali presentes o pouco que sabem sobre as mulheres e no coração das mulheres sentadas na plateia e nos camarotes plantou a esperança insensata de que, algures no mundo, haja um homem assim à espera delas, que saiba o que ele sabe, que cante como ele canta e que sorria como ele sorri. Por respeito aos crentes, Chico terminou em tons verde-rubros, agradecendo a esperança e pedindo alecrim, como um vizinho à varanda do outro lado do mar.
De mão dada com a minha mulher – ela a trair-me em pensamento com o senhor Francisco Buarque e eu, em pensamento, a perdoar-lhe a traição – saímos para a noite de Lisboa, que nos pareceu mais amena que antes, mais humana, mais nossa. Enquanto subíamos a Avenida da Liberdade, trauteávamos canções que ele não tinha cantado, histórias de amantes que fazem samba e amor até às tantas, histórias de Ritas nem sempre Ritas que levam sempre o nosso sorriso e os nossos vinte anos, histórias de mulheres despeitadas que servem vinganças frias olhos nos olhos. Naquele momento, passou por nós uma mulher a descer a avenida, rente às bancadas erguidas para o desfile das marchas populares. Quando olhámos para trás, já não a vimos e lembrámo-nos da moça do sonho que ele cantara há momentos, aquela que desaparece ao mínimo toque e cujo rosto, com um sopro, se desfaz em pó. Como é que era o resto? Ah, era assim: “há de haver um confuso casarão, onde os sonhos serão reais e a vida não.”