Saltar para: Post [1], Comentar [2], Pesquisa e Arquivos [3]

Circo da Lama

"Se ele for para a Suiça, não lhe guardo as vacas", David Queiroz, pai de António, vencedor da Casa dos Segredos

"Se ele for para a Suiça, não lhe guardo as vacas", David Queiroz, pai de António, vencedor da Casa dos Segredos

Circo da Lama

28
Set09

Um chileno morto

Bruno Vieira Amaral

 

O fim-de-semana começou no tenebroso evento. Críticos, escritores, actrizes, um ministro da cultura, margaritas que teimavam passar ao largo da minha sede e empregados de mesa. Aquilo estava tão bem organizado que ouvi alguém perguntar se o autor ainda demorava muito. “É chileno”, disse um sujeito com cara de estar habituado à falta de pontualidade dos latino-americanos. Francisco José Viegas, o editor, abriu as hostilidades. António-Pedro Vasconcelos leu um excerto, não sem antes reconhecer que ainda não tinha lido o livro todo, atitude merecedora da simpatia de um público que se encontrava maioritariamente nas mesmas condições. Seguiu-se a actriz Carla Bolito que ia bem lançada para ler a obra na íntegra. A sensatez impediu-a de cometer essa genialidade. Foi então a vez de José Eduardo Agualusa. O escritor angolano escolheu um trecho que lhe permitiu chamar filho-da-puta a Estaline e a Lenine e deitar as culpas num chileno morto. José Mário Silva também chamou filho-da-puta ao chileno morto, embora a sua intenção fosse elogiosa. Desconheço se a leitora seguinte, Soraia Chaves, chamou filho-da-puta a alguém, porque quando ela iniciou a intervenção eu fui para a rua aproveitar os favores do Outono. Quando regressei, Carlos Vaz Marques, o único na sala que seria capaz de, naquela noite, entrevistar o chileno morto, tal a quantidade de escritores latino-americanos com quem já falou, declamava fervorosamente uma passagem que o chileno morto dedicou a esse grande tema da literatura mundial: os benefícios de engolir esperma em grandes quantidades em tempos de guerra.
 
Confesso que sou contra a mercantilização da literatura, contra a conspurcação editorial do talento. O verdadeiro escritor, aquele que almeja a eternidade e não apenas o pão, aquele que deseja a imortalidade literária com tal intensidade que se esquece que tem o gás para pagar, nem se deve sujeitar à vergonha de publicar o que escreve. Sócrates escreveu algum livro? Jesus? Alguém se lembra da festa de lançamento d’ A República? O verdadeiro escritor deve deixar tudo na arca ou, no máximo, pendurar as folhas A4 no estendal, sujeitas ao teste do tempo e do Tempo. Ao editor, admitindo a existência de tão negra figura, ser-lhe-á concedido o privilégio de passar as molas ao génio.
 
Terminada a sessão de leitura o público dispersou e eu regressei a casa já em estado de reflexão. No sábado de manhã dirigi-me à Fnac. Comprei um livro de Philip Roth para poder insultá-lo com conhecimento de causa. Passei a tarde a ler o livro para chegar à triste conclusão de que um bom insulto depende em certa medida da nossa ignorância acerca do objecto que queremos insultar. Lentamente comecei a sentir a angústia do voto. Dediquei o resto do dia a pensar num símbolo que, uma vez inscrito no boletim e observado de um certo ângulo pelo escrutinador, pudesse ser contabilizado como um voto a menos no Bloco de Esquerda. Adormeci. Ainda era madrugada quando me levantei. Pensei que seria agradável que um outro eu votasse por mim e que votasse em branco, que a ceifeira interrompesse, por um dia, o seu eterno movimento pendular e que a humanidade inteira comemorasse o acontecimento num centro comercial qualquer. Ah!, suspirei, apesar de não ser aconselhável suspirar com um Ah!, se a vida pudesse ser como nos romances de Saramago! Entretanto vesti-me e fui votar, não exactamente por esta ordem. À porta da escola, alguns cidadãos comparavam as canetas com as quais profilaticamente se tinham apetrechado. Um deles, de bigode proletário, garantia que comprara a caneta para o efeito, visto não ser ele homem de convivência com artefactos tão burgueses. Naqueles olhos reluzia um misto de orgulho democrático e de consciência sanitária. Nunca, em toda a história da democracia portuguesa, o dever cívico de votar e o medo de contrair uma gripe se uniram num gesto tão elevado. Abençoados porcos mexicanos! Votei. Não levei a minha caneta. Tive de utilizar a caneta pública, a meretriz democrática que a todos, à excepção dos mais cuidadosos, oferece os seus préstimos. A Marianne do nosso regime é aquela caneta solitária, hóstia dos republicanos ateus. Na íntima reclusão do biombo, carregando o peso que cai sobre os ombros do cidadão na hora das decisões soberanas e sagradas, venci os meus escrúpulos e escrevi: “Filhos-da-Puta!”. Assinei: “Um chileno morto”.

1 comentário

Comentar:

Mais

Se preenchido, o e-mail é usado apenas para notificação de respostas.

Este blog tem comentários moderados.

Este blog optou por gravar os IPs de quem comenta os seus posts.

Seguir

Contactos

Subscrever por e-mail

A subscrição é anónima e gera, no máximo, um e-mail por dia.

Arquivo

  1. 2019
  2. J
  3. F
  4. M
  5. A
  6. M
  7. J
  8. J
  9. A
  10. S
  11. O
  12. N
  13. D
  14. 2018
  15. J
  16. F
  17. M
  18. A
  19. M
  20. J
  21. J
  22. A
  23. S
  24. O
  25. N
  26. D
  27. 2017
  28. J
  29. F
  30. M
  31. A
  32. M
  33. J
  34. J
  35. A
  36. S
  37. O
  38. N
  39. D
  40. 2016
  41. J
  42. F
  43. M
  44. A
  45. M
  46. J
  47. J
  48. A
  49. S
  50. O
  51. N
  52. D
  53. 2015
  54. J
  55. F
  56. M
  57. A
  58. M
  59. J
  60. J
  61. A
  62. S
  63. O
  64. N
  65. D
  66. 2014
  67. J
  68. F
  69. M
  70. A
  71. M
  72. J
  73. J
  74. A
  75. S
  76. O
  77. N
  78. D
  79. 2013
  80. J
  81. F
  82. M
  83. A
  84. M
  85. J
  86. J
  87. A
  88. S
  89. O
  90. N
  91. D
  92. 2012
  93. J
  94. F
  95. M
  96. A
  97. M
  98. J
  99. J
  100. A
  101. S
  102. O
  103. N
  104. D
  105. 2011
  106. J
  107. F
  108. M
  109. A
  110. M
  111. J
  112. J
  113. A
  114. S
  115. O
  116. N
  117. D
  118. 2010
  119. J
  120. F
  121. M
  122. A
  123. M
  124. J
  125. J
  126. A
  127. S
  128. O
  129. N
  130. D
  131. 2009
  132. J
  133. F
  134. M
  135. A
  136. M
  137. J
  138. J
  139. A
  140. S
  141. O
  142. N
  143. D