28
Set09
Um chileno morto
Bruno Vieira Amaral
O fim-de-semana começou no tenebroso evento. Críticos, escritores, actrizes, um ministro da cultura, margaritas que teimavam passar ao largo da minha sede e empregados de mesa. Aquilo estava tão bem organizado que ouvi alguém perguntar se o autor ainda demorava muito. “É chileno”, disse um sujeito com cara de estar habituado à falta de pontualidade dos latino-americanos. Francisco José Viegas, o editor, abriu as hostilidades. António-Pedro Vasconcelos leu um excerto, não sem antes reconhecer que ainda não tinha lido o livro todo, atitude merecedora da simpatia de um público que se encontrava maioritariamente nas mesmas condições. Seguiu-se a actriz Carla Bolito que ia bem lançada para ler a obra na íntegra. A sensatez impediu-a de cometer essa genialidade. Foi então a vez de José Eduardo Agualusa. O escritor angolano escolheu um trecho que lhe permitiu chamar filho-da-puta a Estaline e a Lenine e deitar as culpas num chileno morto. José Mário Silva também chamou filho-da-puta ao chileno morto, embora a sua intenção fosse elogiosa. Desconheço se a leitora seguinte, Soraia Chaves, chamou filho-da-puta a alguém, porque quando ela iniciou a intervenção eu fui para a rua aproveitar os favores do Outono. Quando regressei, Carlos Vaz Marques, o único na sala que seria capaz de, naquela noite, entrevistar o chileno morto, tal a quantidade de escritores latino-americanos com quem já falou, declamava fervorosamente uma passagem que o chileno morto dedicou a esse grande tema da literatura mundial: os benefícios de engolir esperma em grandes quantidades em tempos de guerra.
Confesso que sou contra a mercantilização da literatura, contra a conspurcação editorial do talento. O verdadeiro escritor, aquele que almeja a eternidade e não apenas o pão, aquele que deseja a imortalidade literária com tal intensidade que se esquece que tem o gás para pagar, nem se deve sujeitar à vergonha de publicar o que escreve. Sócrates escreveu algum livro? Jesus? Alguém se lembra da festa de lançamento d’ A República? O verdadeiro escritor deve deixar tudo na arca ou, no máximo, pendurar as folhas A4 no estendal, sujeitas ao teste do tempo e do Tempo. Ao editor, admitindo a existência de tão negra figura, ser-lhe-á concedido o privilégio de passar as molas ao génio.
Terminada a sessão de leitura o público dispersou e eu regressei a casa já em estado de reflexão. No sábado de manhã dirigi-me à Fnac. Comprei um livro de Philip Roth para poder insultá-lo com conhecimento de causa. Passei a tarde a ler o livro para chegar à triste conclusão de que um bom insulto depende em certa medida da nossa ignorância acerca do objecto que queremos insultar. Lentamente comecei a sentir a angústia do voto. Dediquei o resto do dia a pensar num símbolo que, uma vez inscrito no boletim e observado de um certo ângulo pelo escrutinador, pudesse ser contabilizado como um voto a menos no Bloco de Esquerda. Adormeci. Ainda era madrugada quando me levantei. Pensei que seria agradável que um outro eu votasse por mim e que votasse em branco, que a ceifeira interrompesse, por um dia, o seu eterno movimento pendular e que a humanidade inteira comemorasse o acontecimento num centro comercial qualquer. Ah!, suspirei, apesar de não ser aconselhável suspirar com um Ah!, se a vida pudesse ser como nos romances de Saramago! Entretanto vesti-me e fui votar, não exactamente por esta ordem. À porta da escola, alguns cidadãos comparavam as canetas com as quais profilaticamente se tinham apetrechado. Um deles, de bigode proletário, garantia que comprara a caneta para o efeito, visto não ser ele homem de convivência com artefactos tão burgueses. Naqueles olhos reluzia um misto de orgulho democrático e de consciência sanitária. Nunca, em toda a história da democracia portuguesa, o dever cívico de votar e o medo de contrair uma gripe se uniram num gesto tão elevado. Abençoados porcos mexicanos! Votei. Não levei a minha caneta. Tive de utilizar a caneta pública, a meretriz democrática que a todos, à excepção dos mais cuidadosos, oferece os seus préstimos. A Marianne do nosso regime é aquela caneta solitária, hóstia dos republicanos ateus. Na íntima reclusão do biombo, carregando o peso que cai sobre os ombros do cidadão na hora das decisões soberanas e sagradas, venci os meus escrúpulos e escrevi: “Filhos-da-Puta!”. Assinei: “Um chileno morto”.