Cinco da Tarde
Eu não queria que as coisas se tivessem passado daquela maneira. Eu não queria uma namorada a ler Sartre no parque, deitada de costas na relva húmida, às cinco da tarde de um dia de semana, muito menina e muito infeliz, doutrinada de comunismos e leituras que enrugavam os 16 anos que se queriam viçosos e um tanto burros. Eu não queria, mas estava lá, sentado na mesma relva húmida, vendo dois homens a jogar ténis com serviços de badmington, as corridas esforçadas e inúteis para responder a bolas fáceis, excelentes na contabilidade dos pontos (“quinze / trinta”), quem joga mal tem de compensar com conhecimentos teóricos, caso contrário aquilo é só correr à toa, uma pessoa tem de acreditar que mais uns treinos e aquilo seria Wimbledon e não um campo de ténis em Alhos Vedros, ao lado de uma casa em ruínas e de onde se avistava um armazém de material eléctrico, e enquanto eu me distraía nesta observação tépida da vida, ela murmurava as últimas palavras de um parágrafo, sorria algumas frases incompletas e nesse dia eu decidi que entre Sartre e Camus eu haveria de dar a minha vida por este último, pied-noir e guarda-redes, basta olhar para as fotografias e instintivamente nós somos Camus. Silêncio. O que interessa neste caso é a mulher. O jeito de segurar o livro, as mãos já dotadas de sabedoria antiga - ao vê-las eu não podia acreditar que eram de alguém que ainda não tinha um único cabelo branco –, muito pálidas, o azul das veias como rios desenhados num mapa, e a minha atenção desviava-se dos tenistas amadores para aquela cartografia singular, talvez Lúcia fosse um mapa que me cabia decifrar e no fim dessa indagação repousasse lúcia-inteira, lúcia-sem-sartre, lúcia-só-lúcia a luzir. Mas essa Lúcia eu já não conheci. Lembro que eram cinco da tarde, hora má para adivinhar o futuro.