12
Nov09
Grande Ave Negra
Bruno Vieira Amaral
Fraqueza não gripal atirou-me para a cama. Não é que me tenha atirado, eu é que me fui deixando ficar, Novembro a arrefecer, o rádio do vizinho que não se cala dia e noite (ontem, duas da manhã, “ai que sarilho / ser pai dum filho”), The Wire no Mov, deixa lá ver isto, duas cenas, à terceira um preto beija um mulato, ambos gangstas, estas coisas só nas séries da HBO, o mulato, filho da cobra, é bichona, bichinho, quer que o preto o coma, corte para outra cena, adormeço. Lembro-me do Lito. Preto, um metro e oitenta, olhos grandes de gazela, bom corpo, ademanes, entrava no café rodeado de um séquito felliniano, um mulato baixinho, magro, sem um dos dentes da frente, ria-se e ocultava o buraco com a língua, estava ali para se rir das palavras do Lito, uma ou duas putas, cabelos oxigenados, dentição ruim, perfumadas até à náusea, à mesa transfiguravam-se, seguravam os talheres como princesas, comiam de boca fechada, levavam o copo de vinho à boca como descendentes dos Bourbon, um branco gordo, vermelho de futuras apoplexias, inchado de digestões demoradas, sub-empreiteiro, ford transit às seis e meia da manhã a dar a volta para pegar cabo-verdianos, comia que nem um porco, na quantidade – grande – e nos modos – nulos. No meio, iridescente, Lito, o Rei-Sol negro, saca de um maço de notas, cigarro ao canto da boca, exibe-o com o despudor dos ex-pobres, gargalha como uma grande ave negra e bêbeda, uma grande ave fêmea, capaz de gestos lábeis e fúrias tremendas: “Ouviu, ó, Sr. Teixeira? Ponha na conta. Não faça essa cara, porra! Alguma vez lhe fiquei a dever? Diga lá! Alguma vez aqui o Lito lhe ficou a dever?” E a trupe contorcia-se de riso, o gordo à beira de rebentar, o Lito a brandir um maço de notas e a dizer ao homem para pôr na conta, este Lito, pá, tem cada uma, e o Lito olhava-os malandramente, e eles, os acólitos, riam, empanturrados de pão e febras, “Que merda de febras são estas, ó, Sr. Teixeira? Sirva lá comida como deve ser!”, e uma vez quando o Teixeira exigiu pré-pagamento, os pratos, a mesa, os copos, foi tudo pelos ares, os outros calaram-se, o Sr. Teixeira, com a raiva muda dos mansos, a olhar para aquilo, o Lito a chegar ao pé dele, narinas enfunadas, os olhos cheios de sangue e ódio, a lançar o bafo na cara do velho, que tentava afastá-lo timidamente pondo-lhe as mãos na cintura, “Já lhe fiquei a dever alguma coisa, caralho?”, com a cara quase encostada, silêncio, o Lito pega num cinzeiro e atira-o contra as prateleiras, duas ou três garrafas para o chão, meu deus, o desânimo do Teixeira, a impotência dele, o olhar cheio de súplicas aos outros clientes, que faziam que não viam, e quando ele pensava que o Lito ia saltar para cima dele como uma hiena, o Lito, a grande ave negra, grande Ava negra, desata numa gargalhada histriónica, exagerada, abraça-se ao Teixeira, beija-lhe a testa, “Ó, Teixeira, desculpa lá esta confusão, eu pago tudo”, sempre a rir, a mão a tactear os bolsos, tira as notas, o Teixeira a querer apanhar os cacos, “Deixa lá isso, nós já apanhamos tudo”, sorri a medo, ainda assustado, uma criança velha, era o que ele parecia. Acordo. Tiros no The Wire, Novembro mais frio, rádio do vizinho (três da tarde, “casei com uma velha / da Ponta do Sol”).