Feliz Natal
Eu gostei dos The Gift. Era jovem, acreditava no Nuno Galopim e havia a Sónia Tavares. E aquilo era pessoal de Alcobaça e eu tenho uma grande simpatia pela região Oeste, uma área razoavelmente obscura, propícia a produtores de fruta e artistas com o glamour de funcionários públicos. Também não era difícil apreciar a capacidade de iniciativa do quarteto. Consta que manufacturavam os cds e se calhar havia um primo que lhes imprimia os bilhetes e o “merchandáize” numa reprografia dos Pousos. Esta peculiar combinação de amadorismo e talento musical (na verdade, era uma apropriação pueril de Portishead e Divine Comedy, como se uma Beth Gibbons fosse largada na A8 e tivesse o azar de ser atropelada por uma carrinha conduzida por um Neil Hannon) foi celebrada como um exemplo nacional do “do it yourself”, ou seja, Guerra das Estrelas filmado na Marinha Grande com vassouras em vez de sabres de luz. O entusiasmo provocou delírios. Falou-se em internacionalização – o mais duradouro mito urbano da música portuguesa e que teve o seu auge com aquele disco em que o Miguel Ângelo cantava em castelhano. Todos sabemos o que isso quer dizer: primeiras partes em Huelva e inúmeras referências no Ípsilon ao interesse demonstrado por editoras internacionais (“Imprensa inglesa rendida ao charme de …”; “franceses não resistem a …”; “agricultores do Connecticut só ouvem The Legendary Tiger Man”). Esgotado o filão internacional, a banda de Alcobaça regressou à base e às raízes. Amália. Objectivo: dar a conhecer Amália às novas gerações, o equivalente a popularizar o fado com a música do Pingo Doce. Dar a conhecer Amália desta forma, sem a voz de Amália, com a voz de Sónia Tavares em perfeita agonia entre sintetizadores operáticos que só me lembram a XX Grande Gala Travesti, é uma ideia bizarra. A presença crowleyiana de Fernando Ribeiro é sinistra e, ao mesmo tempo, enche-nos de esperança. Pode ser que ele tenha sido convidado para decapitar os outros. Já não gosto dos The Gift. E o Natal já não é o que era.