21
Jan10
O Crime
Bruno Vieira Amaral
O intelectual português, espécie à qual eu gostaria de pertencer logo que a minha mãe me ofereça umas calças adequadas, compra a New Yorker para sentir a civilização na ponta dos dedos, para sentir em inglês o odor inconfundível de uma ideia que já teve, mas que a rígida legislação laboral, que o obriga a sofrer horrores num call-center de Odivelas, o impediu de materializar em forma de artigo no Jornal de Letras. Eu, intelectual português wannabe, compro O Crime para manchar de sangue a polpa dos meus dedos delicados. Que O Crime ainda não seja reconhecido como baluarte da nossa imprensa escrita e da nossa cultura, diz mais da pobreza das nossas elites do que da qualidade intrínseca deste jornal – que é, não restem dúvidas, pavorosa. Quem, como eu, não se pode dar ao luxo de fins-de-semana nas Pousadas de Portugal, tem, ainda assim, direito a saber o que se passa no país real. O país que nós conhecemos trocou a agricultura pela blogosfera, as vindimas pelo lançamento de livros, o sexo por temporadas inteiras de séries americanas (é assim que hoje em dia se vêem as séries, não é como antigamente, em que saltávamos do episódio 3 do Justiceiro para o 50 do MacGyver, convencidos, mesmo que por breves segundos, de que era a mesma série e, em casos terminais, o mesmo episódio) e a Vila de Ourique pelo Ouriquense. Mas há um outro país onde ainda se agricultiva, onde o lançamento de livros, se os houvesse, acabaria no frontispício do cabrão do miúdo que não pára com a choradeira, onde o sexo é uma actividade que resiste à escassez demográfica (eu, menino da cidade, não me caso porque seria incapaz de ter relações sexuais com alguém da minha família) – é este o país que O Crime, qual arquivo para os futuros historiadores, nos oferece pela módica quantia de 1,30 euros. Em que outro jornal, para já não falar em blogs, poderíamos encontrar a comovente história do Pedro Jorge, de 39 anos, que vivia com o tio? O Pedro Jorge, símbolo de um Portugal que teima em ser Portugal, matou o tio com um tiro de caçadeira. E matou-o, não porque o tio lhe tivesse chamado filho da puta num blog, não porque o tio não o tivesse convidado para o lançamento de um livro, não porque o tio não lhe quisesse dar dinheiro para o vinho. Peço desculpa. Pedro Jorge matou o tio porque este não lhe quis dar dinheiro para o vinho, mas este facto revela apenas uma parte, e não a menos sanguinária, do carácter do rapaz-homem. É que, uma semana após a trágica ocorrência, Pedro Jorge, numa manifestação nobre dos seus sentimentos mais profundos, reconheceu que matou o tio, mas que já tinha saudades dele. Caro leitor, na selva urbana que é a nossa, as pessoas matam-se e poucas horas depois já nem se lembram do nome da vítima, se é que alguma vez a conheceram. Ao ler O Crime, eu desfolho um país, tacteio as inocentes pétalas deste bom povo e encontro gente genuína como o Pedro Jorge, gente que mata a família (a família, reparem, ele não matou um estranho, matou um familiar, também isto é ser português) quando esta não lhe dá dinheiro para o vinho (o vinho, meus amigos, o vinho; não foi cerveja, nem vodka do Lidl, foi vinho, e também isto é ser português), gente que arranja sempre um quartinho vago no coração para esse sentimento tão nosso e tão universal: a saudade. Também isto é ser português.