15
Fev10
Gestas e Varas
Bruno Vieira Amaral
O que eu gostava mesmo de escrever, se talento tivesse para tais empreitadas, era uma gesta. O texto primordial da nação, a bíblia do patriotismo, acessível a qualquer filho-da-mãe que, após a leitura, verteria lágrimas de arrependimento, amaria profundamente a pátria, os seus heróis e cada uma das pedras, vetustas ou lá colocadas na altura da Exposição do Mundo Português, dos castelos, saberia o nome dos rios e o cognome dos reis, onde nascem as fronteiras e desaguam as tragédias, a árvore genealógica da família real e os brasões das casas de má fama, as ínclitas gerações e os barões assinalados, as proclamações de independência e os murmúrios de dependência, os terramotos e as reconstruções, os filipes e as conchas, os duartes, os sidónios e os possidónios, os sidosos e os sifilíticos, os comunas e os regicidas, saberia tudo de todos e alegrar-se-ia de ser ele também fruto da árvore frondosa (aquela que contornamos no início do filme do Oliveira), antiga e invencível, sob a qual descansam os ricos e bons homens do morgadio e a cujos ramos trepam os macacos de aldeia e seus acólitos, lá vem o taberneiro, traz duas pipas cheias e duas filhas zarolhas, uma mulher sem dentes carregada de pastéis de bacalhau, tira-os da algibeira e joga-os aos cães e aos pobres, que a eles se lançam como gato a bofe, sete cães a um osso, estala o foguetório, “Ah, Bodas de Camacho!”, bons eram os tempos, boa e velha árvore, que a nós nos dás sombra e bolotas aos porcos. Mas tarde cheguei à nação, que já por aí andava ao deus-dará quando eu nasci, espetaram-lhe colheradas de democracia mas aquilo caiu-lhe na fraqueza, engasgou-se e pôs-se a arrotar restos de europa, a bolçar expos e euros e agora é assim como vedes, calhou-nos este moisés das beiras, de vara na mão a apascentar varas de sócrates, que o seguem mal e porcamente, que o Mar Vermelho é já ali e mesmo sem o bafo dos exércitos do faraó nos pescoços hão-de afundar-se, que isto de apartar águas não é para todos.