Feira Velha
A excitação infantil com os objectos novos em folha. Depois, o tédio. Finalmente, o abandono. Lembro-me da Feira Nova, do luxo de quatro salas de cinema, a lotação esgotada para as sessões da noite, lojas e restaurantes cheios. Agora, passo por lá e está tudo vazio. As salas de cinema desactivadas, o grande pronto-a-vestir fechado, escondido por papel pardo colado aos vidros, como um sem-abrigo a ocultar a miséria atrás de jornais velhos. Um derradeiro indício de decoro. Onde havia luzes, barulho e pessoas só há escuridão e silêncio. Resiste um único café. A empregada está ali, profissional e soturna, à espera de ninguém. Até o ruído da máquina de café soa como um lamento, como se tudo naquele espaço - pessoas e objectos - fizesse um sacrifício para servir os últimos clientes. Do outro lado do balcão, a televisão está desligada. De onde estou, vejo a cozinha vazia e arrumada, a arrumação fúnebre das coisas que estão para acabar. Dos altifalantes do hipermercado cai uma música fantasmagórica, um requiem foleiro, o som de uma grafonola num bordel de putas velhas, a transpirar boleros húmidos. Andar por aqueles corredores sabe a ferrugem. Uma criança corre à volta de um carro de moedas que tem colada uma folha branca escrita à mão “Fora de Serviço”. A criança só tem presente. Ignora que aquele tempo já passou. Sobe para o carro e já está noutro lugar. Deixo o interior do animal gigante e moribundo. Cá fora, o mundo é o mesmo de sempre: a chuva miúda, as poças tímidas, o odor longínquo do mar, o odor acre de tudo o que perdemos.