O vilão que ri
As contribuições de Dan Brown para a História da Literatura ainda estão a ser contabilizadas. O trabalho está a cargo de uma organização secreta para a qual eu trabalho a recibos verdes e em regime de part-time. Até há bem pouco tempo, recebia semanalmente uma mensagem codificada com o local e a hora onde tinha de entregar um relatório sobre os progressos da minha investigação. Como o local e a hora eram sempre os mesmos, a organização decidiu acabar com as mensagens, o que entendi como uma prova de confiança na minha capacidade de dedução. O último relatório que entreguei indicava que Dan Brown teria criado o segundo vilão mais sorridente de todos os tempos (depois do Joker e muitos lugares à frente do Salieri de F. Murray Abraham): Mal’Akh. E quais são as razões para Mal’Akh sorrir? Em primeiro lugar, Mal’Akh cortou os próprios testículos, uma excelente razão para alguém passar o tempo a sorrir, sobretudo na modalidade “sorrir para consigo”. “Satisfeito, passou a palma da mão macia pelo couro cabeludo liso e sorriu” (p.25); “Mal’Akh sorriu para consigo” (p. 38); “Sigo na dianteira, pensou Mal’Akh, sorrindo para consigo” (p. 72); “Sorriu, saboreando a frescura do crepúsculo” (numa página qualquer); “Mal’Akh riu-se para si mesmo”, “Mal’Akh sorriu”, “Mal’Akh sorriu” (p. 125); “Mal’Akh sorriu uma última vez ao homem” (p. 152); “Depois desta noite, pensou ele com um sorriso, não terei necessidade deste lugar” (p. 292); “Mal’Akh sorriu”, depois de ter recebido um e-mail (p. 359); “o homem tatuado limitou-se a sorrir” (p. 420). Dan Brown libertou gás “hilariante-para-consigo”, um elemento químico presente em algumas plantas da selva boliviana e em prosa de má qualidade, e Mal’Akh não consegue parar de sorrir, seja para consigo, para com os outros, ao sentir a frescura do crepúsculo, enquanto conduz. Enfim, é um homem satisfeito como qualquer outro prestes a descobrir um segredo que pode transformar o mundo, destruir os pilares da democracia americana e desencadear o processo de beatificação de Paris Hilton. Segue as transcrição de uma conversa entre Dan Brown e Mal’Akh:
- Bom dia. O senhor é o Dan Brown?
- Sim, sou eu. Em que posso ajudá-lo?
- Bem, em primeiro lugar ficar-lhe-ia muito grato se me restituísse os meus testículos. Nos últimos tempos sinto-me como um lançador do martelo da ex-RDA, ou como uma lançadora. Tanto faz.
- Quem é o senhor?
- O meu nome é Mal’Akh que significa…
- Nada. Mal’Akh não significa nada. Foi uma brincadeira da minha parte. Então você existe mesmo? Curioso. Mas, olhe, eu não lhe posso devolver os testículos. Você é uma personagem de ficção. O processo é muito demorado.
- Se há alguém capaz de o fazer, é o senhor.
- Nada feito. Que tal escolher o actor que o vai representar no cinema?
- Pode ser o Yul Brynner?
- Não. Já morreu. Eu escrevo ficção. Baseada em factos e teorias da conspiração, é verdade, mas ficção. Não ressuscito ninguém.
- Oiça uma coisa, o senhor descobriu a descendente de Jesus Cristo e diz-me que o Yul Brynner não pode ser o Mal’Akh? Arranje uma solução!
- A sério, não posso. Clive Owen?
- Caramba, quem é que vai acreditar que o Clive Owen não tem tomates?
- Sigourney Weaver?
- Vá lá, o senhor é capaz de melhor.
- E se eu lhe arranjar um papel no meu próximo livro?
- Não me interessa. Graças à sua imaginação, passei uma temporada numa prisão turca e fiquei sem testículos. Que tipo de pesquisa é que o senhor fez? Viu O Expresso da Meia-Noite enquanto lia a biografia do Farinelli? Só faltou uma gaja a esfregar as mamas no vidro.
A partir deste momento, a gravação perde qualidade e é impossível transcrever a conversa com rigor.