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Circo da Lama

"Se ele for para a Suiça, não lhe guardo as vacas", David Queiroz, pai de António, vencedor da Casa dos Segredos

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Circo da Lama

14
Jun10

Amargura

Bruno Vieira Amaral

Pelas cartas que Jorge de Sena escreveu a Sophia de Mello Breyner percebemos que a amargura daquele homem era intrínseca e não, como poderíamos acreditar, um sentimento reservado para a pátria. Há um desarranjo com o mundo que nenhuma mudança geográfica disfarça. A desilusão com o Brasil e com os EUA é somente menos visceral do que a desilusão com Portugal, o que se compreende. O optimismo sofrido de Sophia é a consequência de ter ficado, de quem teve de pensar o país ao mesmo tempo que o vivia, entre o sublime da poesia e as ridicularias de uma elite tacanha. A distância de Jorge de Sena em relação ao país explica o paradoxo de uma lucidez de fundo bilioso. Vem tudo do fígado. Trabalhador incansável, Sena queria ser reconhecido por um país de merda e quanto menos era reconhecido pior se tornava o país aos seus olhos e mais ele desejava o reconhecimento: uma contradição autofágica e inesgotável, um desejo que se alimenta de raiva que alimenta o desejo.

 

Sophia tinha sempre o ideal, a luz límpida e inteira que encontrou na Grécia, porque podia idealizar na sua condição de turista, na sua disponibilidade para se fascinar, de não ir para além da superfície. A experiência do “exílio” – comum a tantos intelectuais da segunda metade do século XX – tornou Sena menos susceptível ao fascínio superficial das paisagens e dos objectos e mais vulnerável aos efeitos do trato humano: “É noite de Natal, de um Natal em que não acredito, mas desejaria verdadeiro, por conta de uma humanidade que, cada vez mais, considero irremediável na sua maldade.”

 

Vejamos as passagens de Sophia sobre a Grécia e o Brasil:

 

“O primeiro prodígio do mundo grego está na Natureza: no ar, na luz, no som, na água. [...] Sob o sol a pique, numa claridade azul indescritível, o ar é tão leve que nos torna alados e o menor som se recorta com uma inteira nitidez. [...] O que há de extraordinário ali é que o mistério é à luz do sol.”

 

“O Rio é lindo mas a maior impressão que recebi foi ao desembarcar no aeroporto do Recife, a madrugada roxa, o calor roxo, o perfume roxo da terra, fruta, flor. Senti-me mergulhada em pleno Lautréamont.”

 

Agora as impressões de Sena:

 

“Mas não se deixe prender pelo exotismo do Brasil – respire, por trás dele, uma humanidade que tem muitos defeitos portugueses, mas não perdeu algumas das qualidades.”

 

“O Brasil é uma beleza, em que há de tudo, desde a floresta primeva à grande cidade [...], e os brasileiros são gentilíssimos, quando uma pessoa está de visita. [...] Eu tenho seis anos daquele país que amo, com um amor muito infeliz.”

 

“Mas olha que o Francisco terá tido certa razão ao reagir ante a Grécia antiga – lembra-te de que aquilo foi uma colossal mistificação criada, à custa dos deuses, pela colecção de cidades mais politicamente pérfidas e oligárquicas, esclavagistas, racistas, suprematistas, etc., que inventaram a democracia para a flasificarem. O Parténon é um milagre que lhe aconteceu [...]. Tudo o mais são milhares de anos de conversa – e por isso, por exemplo, a Ilíada, que acho belíssima, me é horrenda, como apologia do machismo bélico que ainda hoje leva os soldadinhos para as Áfricas e os terroristas para as bombas, as quais são pagas pelas «cidades» para continuarem no poder. Vidé Tucídides, Xenofonte, e outros sujeitos esclarecidos e mal pagos.”

 

Como bom e amargo lúcido, Jorge de Sena tinha clara consciência da sua relação com o mundo (não limitar a sua desilusão à pobre pátria que o pariu) e as suas próprias palavras são definitivas: “Perdoa o sermão que o não é, mas só a muita e inescapável amargura de quem ama a vida e a liberdade, e odeia totalmente o mundo em que lhe é dado viver.”

 

 

Correspondência 1959-1978, Sophia de Mello Breyner e Jorge de Sena, 3ª ed., Guerra e Paz

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