A carcaça pretérita
Depois de uma semana de férias em Melides, a conselho do Professor Cavaco e Silva e por imposição da minha minguada conta bancária, regressei aos arredores da civilização, onde a Zon e o gás canalizado convivem pacificamente com ecopontos vandalizados e paragens de autocarro com horários que apenas servem para que tenhamos consciência da magnitude dos atrasos, indesculpáveis em qualquer outra ligação que não Barreiro-Coina. Resta-me a simpatia da senhora que me vende o pão e que teve a gentileza de oferecer uma carcaça para além das quatro que solicitei. Num país em que a generosidade vive contida durante um ano inteiro para se libertar ferozmente em forma de latas de salsicha e pacotes de esparguete nas campanhas do Banco Alimentar Contra a Fome, este acto de sentido altruísmo comoveu-me até à desconfiança: qual o objectivo de tão inusitada oferenda? Haverá aqui uma fidelização pré-cartões que garante uma carcaça na compra de quatro? Seria a carcaça de ontem? Não. Ontem foi domingo e aos domingos não há pão. Então, se a carcaça não era pretérita, qual o significado oculto desta transacção? Haverá aqui um sentido religioso?, pensei eu enquanto mergulhava a carcaça no molho da salada. Não obtive nenhuma resposta satisfatória pelo que me dediquei ao visionamento distraído do Holanda-Dinamarca. Uma das coisas que me impede de ser o Luís Freitas Lobo é a minha intolerância aos momentos de um jogo de futebol em que não acontece nada, que ronda os 82 ou 83 minutos por jogo. Para os estudiosos do futebol enquanto fenómeno táctico-filosófico, um jogo fervilha de acontecimentos, há sempre qualquer coisa a acontecer, movimentos sem bola, posicionamento, trincos que lêem o jogo como um rabi lê o talmude, passes laterais entre o central e o defesa-direito, as subtis oscilações das sobrancelhas de Domenech, etc. A mim, a ocorrência frenética de eventos é desprovida de qualquer interesse se a bola não estiver nas imediações da grande área ou na posse de um jogador alemão, o que é a mesma coisa. Quando o esférico (sim, o esférico) está nos pés de Badstuber ou de Mertesacker o perigo é três vezes superior ao de uma jogada em que o Simão tenha ultrapassado o defesa-esquerdo e se prepare para efectuar um cruzamento. A minha ligação ao futebol não é romântica, é infantil. Tenho a nostalgia imberbe de um futebol de ataque puro e ignorante, povoado de avançados britânicos desdentados e guarda-redes quarentões a fazerem as vezes das nativas pintadas por Gauguin e em que o relvado é uma extensão da selva naïve de Henri Rousseau. A força magnética que prende a bola aos pés de Messi é a mesma que me prende à televisão nesses momentos em que a táctica e os comentários do Freitas Lobo são solenemente mandados para o caralho e remetidos para as páginas esquecíveis de uma qualquer edição de 4ª feira de A Bola. Aquelas jogadas são tão estúpidas como dez miúdos da primária a correr atrás da bola, sem qualquer ideia de organização e em que a única posição eterna e imutável é a do ostracizado guarda-redes, figura trágica condenada à solidão de uma baliza de pedras; a diferença é que a estupidez de Messi é almofadada pelo génio. Ele faz porque consegue fazê-lo, como o Evil Knievel a saltar por cima de cento e cinquenta autocarros. E são esses momentos que me fazem desviar o olhar da descrição exaustiva das punhetas de Alexander Portnoy para a Sport TV1. Mães castradoras, pais impotentes, hipocondria e hipersexualidade, uma imensa caldeirada de borrego e culpa, a condição judaica como anedota da condição judaica como anedota da condição judaica como anedota da condição judaica, numa linha que vem deste Roth, passa por todo o Woddy Allen e Jerry Seinfeld até aos inócuos American Pie e à nova geração de cómicos (vidé Seth Rogen) que se está positivamente a cagar para estas tretas psicanalíticas e para quem o judaísmo da Europa Central é tão distante como os manuscritos do Mar Morto. Depois de Portnoy, a narração da experiência judaica na primeira pessoa foi repetida no cinema e na televisão até dela não sobrar mais do que uma ideia liofilizada de milhares de indivíduos fechados numa perpétua transmissão de Os Dias da Rádio num canal por cabo. Meninos-prodígio rodeados de familiares com prisão de ventre, tios sinistros e primas-escândalo, empurrados pela hiper-protecção materna para uma sexualidade voraz e culpada, como se tivessem de foder até tirar a imagem da mãe em roupa interior da cabeça. Portnoy é tudo isto. Mas Roth não tem culpa de nos alimentarmos de comida requentada. Afinal, Portnoy já tem quarenta anos e não tem culpa (culpa, culpa, culpa) do que veio depois.