Amor em paz
O amor faz-se e desfaz-se a qualquer hora, nas tardes em que a Primavera é ainda promessa, sol frio, os pés na água límpida da piscina, acaba sem ruído no dia em que ela arruma as roupas na mala e o mundo dos dois - o mundo dos beijos e dos orgasmos, dos passeios e das esperanças fúteis, dos corpos unidos num acidente feliz, mas também o mundo dos talheres e dos lençóis, dos tapetes e da loiça suja, o mundo das vassouras, do lixo, das coisas diárias e invisíveis, de repente transformadas em monumentos trágicos – esse mundo material, objectivo e quantificável - o número de copos e de toalhas de rosto, os metros quadrados da sala – esse mundo que pode ser dividido, encaixotado, partilhado, queimado, perde a solidez e desfaz-se em pó de memória mesmo à nossa frente, sem que o possamos resgatar do naufrágio; esse mundo, e não os sentimentos suspirados, os arrebatamentos e os eflúvios emocionais, esse mundo é que é o amor, uma ruína súbita, um edifício corroído em segundos pelas térmitas da indiferença, uma aldeia abandonada por uma população em fuga, um jazigo com dois corpos de costas voltadas; o amor, quando se desfaz, é esse fantasma sem casa e sem esperança.