Vómitos
Seja em que circunstâncias for, o vómito é uma capitulação ignóbil, um Tratado de Versalhes assinado com as entranhas, um harakiri sem a dignidade dos samurais. A euforia da embriaguez é derrotada pela convulsão involuntária do corpo; o entusiasmo de uma excursão às Minas de Serra d’Aire soçobra perante a confissão visceral de um estômago sensível à trepidação e às curvas. O vómito, como qualquer incontinência, humilha-nos. A bandeira admite empréstimos e doações de sangue, suor e lágrimas, mas não há pátria que solicite aos seus filhos o sacrífício de um vómito. Enjoos maritimos não fazem a grandeza de uma nação, nem mesmo das que se dizem de marinheiros. A Bíblia adverte: homem que reincide no pecado é como o cão que volta ao próprio vómito. E nós, por muito pecadores que sejamos, não somos cães e não invejamos o prazer canino de regressar ao que se expeliu sem nobreza.
Alípio Abranhos, eterno conde, mestre na oratória parlamentar, quando se viu na iminência de um duelo, circunstância que lhe pedia mais da coragem do que da retórica, teve um achaque de donzela, uma revolução gástrica que lhe dobrou os joelhos e o fez expelir uma substância esverdeada onde certamente estava escrita a sua verdadeira natureza flébil. O vómito do conde foi físico e moral, idêntico ao do jovem Marcus Messner, personagem de Indignação, de Philip Roth. Após uma longa e tensa conversa filosófica com o deão, o pobre Marcus vomita para cima da carpete, da cadeira e de uma moldura. Conclui resignadamente que “não tinha estômago para enfrentar o deão dos alunos, como não tinha estômago para enfrentar o meu pai ou os meus companheiros.” O vómito confirma-o.
Que a prosa de Céline chafurdava em merda e pústulas é uma verdade universalmente reconhecida. Mas os prazeres escatológicos do Doutor Destouches nunca terão sido levados tão longe como na célebre cena do vómito colectivo em Morte a Crédito. Uma viagem de barco transforma-se numa orgia de vómito cujo climax é um momento que nem as reticências atenuam: “Ela então vira-me aquela cabeça de uma assentada a favor do vento...Toda a vaca estufada que lhe gorgolejava no gasganete ela ma chimpa em cheio nas ventas...Fica-me tudo nos dentes, os feijões, o tomate..eu que já não tinha mais nada que vomitar!” Purga, catarse ou simples divertimento celineano, a cena é um espectáculo cru da humanidade no mais abjecto e inimputável da sua existência; um quadro de exagero irreal que faz dos passageiros artistas de vaudeville numa dança grotesca. Que futuro poderá haver para uma espécie que se vomita e que escreve sobre isso?