Caro Killer
Aproveito para republicar esta singela carta e aconselhar o leitor a comprar a edição de amanhã do jornal i, com textos inéditos de Francisco José Viegas, Hugo Gonçalves, João Tordo, Mónica Marques e V.M. Barreto sobre crimes reais.
Caro Serial Killer de Santa Comba Dão,
Folgo muito em saber que, para cometer os seus hediondos crimes, ter-se-á inspirado na obra-prima de Nagisa Oshima, O Império dos Sentidos. De início, pensei que você seria mais um daqueles psicopatas comuns que recebem ordens dos cães ou dos electrodomésticos; engano meu. Você pode ser um pouco abrutalhado mas, no seu íntimo, resiste uma centelha estética que normalmente não é associada a criminosos e, muito menos, a cabos da GNR. Por este motivo comecei, não a simpatizar, porque não simpatizo com pessoas que esquartejam outras e que guardam os restos em sacas de ração mas, a compreender as suas motivações artísticas. Digamos que eu estou para si como Stockhausen esteve para o 11 de Setembro. Estou certo de que compreenderá o que quero dizer. O que o torna único e especialmente digno de não ser apedrejado e arrastado desde Santa Comba Dão até à Figueira da Foz é a sua coragem ao assumir-se como adepto de cinema asiático. Você é uma minoria. As suas perspectivas podem não ser as mais animadoras neste momento mas eu antevejo-lhe uma pena levezinha, um indulto e, dê-lhe mais uns três ou quatro aninhos, um subsídio. O seu arrojo estético pode muito bem tê-lo resgatado das acaloradas arengas de Hernâni Carvalho e da minúcia científica de Moita Flores; você conquistou o direito a ser comentado pelo João Lopes. Você não é apenas mais um caso de polícia; você é um enigmático problema de semiótica. Gostaria muito de discutir consigo Kurosawa, sobretudo a multiplicação de pontos de vista em Rashomon, mas presumo que, nesta linda manhã de 6ª feira, você esteja mais preocupado em preservar a sua integridade física, objectivo que considero louvável e, até certo ponto, construtivista.