7700: Klose but no cigar
As estatísticas e os factos sobre mundiais são enormes repositórios do insólito. Além disso, as estatísticas costumam ser burras, sobretudo quando na posse de cabeças burras, e os factos são sempre impiedosos, sem cuidar da sensatez mãos que os manejam. Vejamos, por exemplo, o curioso caso de Oleg Salenko, que foi, a par de Hristo Stoitchkov, o melhor marcador do mundial de 94. Fantástico! Que proeza incrível! Mais: cinco dos seis golos do avançado russo nesse torneio foram marcados no mesmo jogo. Contra os Camarões. Um jogo que já não contava para nada. Uma glória triste. Eu vi o jogo e, ao contrário do que sucedeu há poucos dias ao ver os golos da Holanda contra a Espanha, a sensação não foi a de ver uma das páginas mais inesquecíveis dos mundiais a ser escrita mas a de assistir, em directo, à elaboração de uma das mais extravagantes notas de rodapé de todos os tempos. Naquela tarde sob o inclemente sol californiano, cada golo desajeitado de Salenko, até atingir os cinco que serão o seu penhor para a eternidade, foi um prego na nossa sensibilidade, a sensibilidade de quem continua a acreditar que os quatro golos de Eusébio à Coreia do Norte, e até os quatro golos de Butragueño à Dinamarca, são registos infinitamente superiores ao do pobre Salenko que, contudo, marcou mais um, o seu incontestável argumento a favor dos factos. Consultem todos os almanaques e wikipedias e lá encontrarão a façanha acabrunhada de Salenko: melhor marcador daquele mundial e recordista de golos marcados num só jogo. É por isso que, hoje, a nossa selecção tem pela frente muito mais que o tão importante primeiro jogo. Cabe aos nossos jogadores, sobretudo ao quarteto defensivo e a o guarda-redes, evitar que Miroslav Klose, aquele panzer desengonçado, se torne o melhor marcador da história dos mundiais, o que seria um atentado futebolístico, uma ofensa estética e uma imortalização injusta pela via burocrática da estatística. Não pode acontecer. E se tiver de acontecer, se essa for a vontade dos deuses imbecis que abençoaram Salenko e todos os da sua igualha, então ao menos que o nome de Portugal não fique associado a mais uma infeliz, porém inapagável, nota de rodapé da história do futebol. Entre tantos e tão geniais avançados que aprimoraram a arte de marcar golos, que resistiram à ideia de que um golo é apenas a certificação fatal e desapaixonada de um processo anterior e que instituíram uma arte autónoma, o golo como momento independente da sequência contínua do tempo, suspensão temporária das leis da física, o mundo não pode permitir que seja Klose a figurar no topo. Depois de vermos o golo de Van Persie, aquela ordem ténue dada à bola em pleno voo, com as coordenadas exactas para sobrevoar Casillas, a coroação de Klose seria um insulto, uma mancha vergonhosa, um retrocesso civilizacional a ser chumbado até pelos conspícuos juízes do palácio Ratton. Se aquele senhor terminar este torneio como o melhor marcador de sempre, no dia seguinte estaremos todos, mentalmente, de regresso às cavernas. É preciso evitar semelhante tragédia. Se tudo o resto falhar, confiemos nas artes marciais de Bruno Alves e nos instintos homicidas de Pepe. Confiemos que o futebol encontrará maneira de escrever direito sobre as linhas tortas da estatística.