7700: scratch aleluia!
Por motivos a que eu e a RTP somos alheios, tive de interromper esta crónica nos últimos dias. Deu-se o curioso caso de, há tempos, ter sido convidado para escrever um livro. Quem me fez o convite disse-me, quase ao mesmo tempo, que esse trabalho seria remunerado, o que me deixou de sobreaviso, temendo acabar os meus dias escravizado numa quinta de Trás-os-Montes ou como prostituto em Ayamonte. Confirmei, mais tarde, que a proposta era séria e, dessa forma, tenho dedicado os meus dias a fazer por merecer o dinheiro que me hão-de pagar. É uma história inverosímil mas, como disse alguém mais inteligente que eu, só as mentiras precisam de ser verosímeis.
Três dias sem escrever a crónica, criaram-me o problema do excesso de assuntos do qual fui salvo por aquilo que se passou ontem em Fortaleza. Lá chegarei. Perdi a oportunidade de escrever sobre Tim Howard e o seu conjunto de defesas patrocinadas pela CIA, o galope de Lukaku e o génio de De Bruyne, um grande jogador com cara de apanha-bolas, a minha pobre Argentina e o seu futebol unicelular e o equilíbrio em todos os jogos dos oitavos-de-final (à excepção do Colômbia-Uruguai) que animou os neutrais que, à qualidade rígida de um futebol rigoroso, preferem sempre as emoções, o suor e a incerteza. Veja-se como foi aborrecido o jogo entre Alemanha e a França, que os alemães ganharam quase sem transpirar, e cujo sentido filosófico pode ser encontrado naquelas duas defesas ultrajantes de Manuel Neuer. Mas Deus quis que, ao assistir ao Brasil-Colômbia, eu tivesse uma epifania. E tive. Ontem, ao ver a primeira parte do scratch e tentando perceber exactamente o que era aquilo, uma mistura de pressão diabólica, repelões, faltas, lances de bola parada e atabalhoamento geral que, por força do espírito e da crença, se vai acercando da baliza adversária, descobri que tipo de futebol é este. É com orgulho que anuncio ao mundo que esta selecção brasileira é a primeira equipa a praticar o futebol pentecostal. É isso. Ainda pensei caracterizar o futebol do Brasil como “uruguaio”. A minha ideia era chamar ao Brasil de ontem “Uruguai de amarelo celeste”. Mas o decorrer do jogo revelou-me a verdade. Isto terá a ver com o outro assunto sobre o qual estou a escrever. Ou seja, pode haver aqui um lado de sugestão, reconheço. Mas ofereço-vos este excerto de um livro da investigadora Clara Mafra: “Os ritos pentecostais estão pontuados de pequenas experimentações de transe – na oração forte, na expulsão dos demónios, na recepção do Espírito Santo, na glossolalia, no choro convulsivo diante de um Deus grandioso.” É ou não é este Brasil? Podem ter dúvidas sobre a glossolalia, mas já ouviram o David Luiz a falar inglês? Ou o Neymar a falar português? Depois, parece-me claro que ao cometerem a soma perfeitamente neanderthal de 31 faltas, os brasileiros andavam à procura de expulsar alguma coisa de campo, e aí só se pode dizer que o árbitro espanhol não estava numa de exorcismos, como se pôde ver no caso demoníaco do colombiano Zuñiga que após uma tentativa frustrada de incrustar a chuteira no joelho de Hulk ainda se manteve em campo o tempo suficiente para dividir o número 10 do Brasil em Ney e Mar. Scolari queixou-se, e com razão, do lance que lesionou o craque, mas não lhe convinha referir que a estratégia futebolística do Brasil passou por anular não só a influência de James mas anular a própria presença física do colombiano. Outra coisinha que encontrei no livro de Clara Mafra e que joga a favor da minha teoria: “No transe pode experimentar-se a imobilidade [Fred] ou mobilidade máxima [David Luiz]”. Sobre David Luiz não há muito que se possa acrescentar ao que Gary Neville disse: o central brasileiro parece controlado à distância por um miúdo de dez anos, em correrias loucas de 60 metros em que atropela toda a gente e, agora, em remates amalucados que acabam no fundo das redes. E o choro convulsivo? Meu Deus, os jogadores brasileiros não só se assemelham a um grupo de pentecostais como poderiam ser confundidos como um clube de leitura dos romances de Nicholas Sparks. O fenómeno não é apenas imparável é também muito contagioso. Viram as lágrimas de James? Com tudo isto, futebol feio e Espírito Santo em todo o lado, se o Brasil chegar à final acho melhor que transfiram o jogo do Maracanã para a igreja evangélica mais próxima.