Levantar os ossos
A minha mãe liga-me. Quer saber. Se me ando a alimentar, se já arranjei emprego, se. Que lhe leve a roupa para ela passar. A minha mãe a passar roupa, há quanto tempo, Penélope, uma pilha de roupa interminável, camisas, calças, panos, toalhas, tristezas dobradas em quatro, metidas numa gaveta, a música rouca no rádio, o ar pesado de vapor, a pele dos braços da minha mãe, o que é a pele dos braços da minha mãe? O que são os braços da minha mãe? O que irá sobrar deles quando tudo for sombra? No dia em que levantaram os ossos do meu avô, o dia em que levantaram os ossos do meu avô foi o dia em que levantaram os ossos do meu avô, expressão tão bela para coisa tão feia, já os viste a desenterrar um corpo? A pá acerta na madeira desfeita do caixão, as botas do descoveiro pisam terra, morto e ervas, e lá no fundo, no princípio e no fim de tudo, arrancam-no do eterno descanso, que afinal não é eterno, porque nada é eterno, nem sequer o descanso dos mortos, o fato que a avó escolheu é aquele trapo cheio de ossos dentro, tanto cuidado em respeitar a vontade do morto que quis ser enterrado com o fato do casamento, e ei-la ali, a vontade dele, feita em trapos, em ossos que o descoveiro arranca, um arqueólogo municipal, bate os ossos para lhes tirar o excesso de terra e atira-os para o pano que o colega desembrulhou, e a avó que insistiu que a vontade do avô fosse respeitada, também ela repousa ali, até que numa manhã como esta, mais chuva, menos chuva, alguém virá para lhe tirar a paz, para lhe descobrir, haja olhos que o testemunhem, a nudez óssea de cadáver.