Em Viagem
2ª feira
5:50 – Acordo espontaneamente com os gritos e empurrões da minha mulher. Limpo a baba à almofada e levanto-me, lenta e dolorosamente. Os encontros literários deixam-me sempre neste estado de excitação. Como homem precavido que sou, preparei a mala no dia anterior.
7:30 – Santa Apolónia! Falta-me o computador portátil, um dos telemóveis e roupa interior. Entro no comboio e, heroicamente, não meto conversa com ninguém. A meio da viagem, acordo com o meu próprio ronco e, para disfarçar, imito um porco. Um senhor dos seus oitenta anos pede-me, com educação, que me cale ou, em alternativa, “parte-me o focinho todo”. Como fui ensinado a respeitar os mais velhos, calo-me e concentro-me na leitura d’A Bola.
10:45 – Campanhã. Supostamente tenho alguém à minha espera, mas quando saio da estação vejo apenas os taxistas e um senhor que me pergunta se sou árabe. Faço uns telefonemas. Sou uma pessoa importante. Garantem-me que daí a uma hora alguém me irá buscar. Duas horas depois continuo à espera. Entretanto, fiquei rodeado de turistas que me julgam a meio de uma performance de arte contemporânea. Tiram-me fotografias. Uma senhora de feições asiáticas faz-me cócegas. Finalmente, chega um carro. O motorista acena-me um papel em branco: “desculpe lá. Vinha buscar outra pessoa e nem tive tempo de escrever o seu nome.”
13:20 – Chego ao hotel. A menina da recepção indica-me o número do quarto e informa-me, com um sorriso que tem o seu quê de lúbrico, que a internet é gratuita apenas nos primeiros quinze minutos. Terei de ser criterioso na escolha de vídeos do youporn.
13:40 – Acompanho o escritor Mohamed Berrada numa entrevista. A jornalista não fala francês e eu traduzo as perguntas com tanta competência que o sr. Berrada, não podendo acreditar no que ouve, pede-me que repita um pouco mais devagar, certamente para saborear cada sílaba do meu francês. O sr. Berrada diz-me que tenho ar de marroquino.