Terra
Foi o meu amigo Marco Serrano, homem que abandonou as letras e se pôs a voar, que me chamou a atenção para essa frase que anda lá pelo início de Cem Anos de Solidão. Diz (creio) que nenhuma terra é nossa enquanto não enterrarmos lá um morto. É verdade. Enterrar os nossos mortos vale mais do que hastear bandeiras ou cravar marcos geodésicos na beira da estrada. A nossa terra é sempre onde estão os nossos mortos. Há uns meses vi uma reportagem na televisão em que levavam um homem de regresso a Angola. O homem viera para Portugal ainda criança, criado por uma família de portugueses brancos. Nunca mais regressara a Angola. A televisão – moderna endireitadora de tortos – levou-o para rever os irmãos que por lá ficaram. Ao ver o sangue vivo dos seus vivos, o homem emocionou-se, chorou, perdeu-se em abraços. Mas foi apenas quando descobriram a campa da sua mãe, escondida entre o capim voraz, que aquele homem regressou à sua terra. Regressar à nossa terra é regressar aos nossos mortos, de que os vivos são manifestações breves e frágeis, meros fantasmas de carne e osso. Dois meses antes de morrer, quando a doença ainda não a tinha deixado cega e presa a uma cama anónima de hospital, a minha avó quis ir à terra, Montalvão, uma pequena aldeia do Alto Alentejo. Organizou tudo e partiu com a minha irmã, na altura com treze anos. Ficaram por lá uns dias, poucos. Não sei ao certo o que a minha avó terá feito nesses dias, desconheço os pormenores, talvez a minha irmã saiba. Do que não tenho dúvidas é que a minha avó foi lá para se despedir, para dizer adeus à terra. Creio que a passagem dela por este mundo terminou no momento em que entrou na camioneta que vai para Nisa e em que pela última vez viu a aldeia, uma silhueta de casas a desfazer-se na distância. Os últimos dois meses foram um sofrimento desnecessário, um epílogo inútil em que a minha avó deixou de ver o mundo e as pessoas, mesmo que o apego instintivo à existência, “o duro desejo de durar”, a fizesse acreditar na recuperação, na ideia de regressar a casa e pôr as batatas ao lume. Foi sepultada num cemitério a mais de duzentos quilómetros da terra, muito longe da campa da mãe, o lugar a que verdadeiramente pertencia depois de uma vida deslocada, da província para a capital e da capital para os subúrbios.
Abomino o nacionalismo político que, de maneira infame, se aproveita do amor genuíno das pessoas à terra para arrancar ódio e intolerância, rancor e mesquinhez de um sentimento que é, na sua origem, tão humano, profundo e honesto. Mas também não acredito em cidadãos do mundo que não sejam, antes de tudo, filhos de uma terra, que se gabem de não pertencer a lado nenhum. Não aceito o argumento de que as árvores têm raízes e os homens têm pernas, porque as nossas raízes não são físicas, são feitas de memórias, são os lugares em que primeiro amamos, os lugares cheios da presença viva dos nossos mortos. A terra, a ideia de pertença a um lugar, foi pretexto para crimes terríveis e para ideologias hediondas, mas não nos esqueçamos que a primeira violência cometida sobre as vítimas foi dizer-lhes que não pertenciam a lado nenhum, que a terra onde tinham nascido e amado, a terra onde já estavam os seus mortos, não lhes pertencia. De que serve negar isso? Talvez seja um esforço meritório para tornar os homens mais livres, mais senhores de si e menos escravos dos mitos da terra e do sangue. Um esforço para nos livrarmos da carga com que nos albardam à nascença. “Puedo decir que mi patria es mi hijo y mi biblioteca”, escreveu Roberto Bolaño, para quem as únicas fronteiras de um escritor são “las fronteras de los sueños, las fronteras temblorosas del amor y del desamor, las fronteras del valor y del miedo, las fronteras doradas de la ética.” Se assim fosse, nunca mais nenhum escritor se sentiria exilado desde que a seu lado tivesse aqueles que ama e a sua biblioteca. Esta perspectiva libertadora do exílio é partilhada pela escritora checa Vera Linhartova, de que nos fala Milan Kundera num ensaio breve no livro Um Encontro (Dom Quixote, 2011). Num colóquio sobre o exílio, no início dos anos 90, Linhartova disse que “o escritor é em primeiro lugar um homem livre, e a obrigação de preservar a sua independência contra todos os constrangimentos prevalece sobre qualquer outra consideração.” O exílio pode não só libertar o escritor da pátria, mas também da língua: “O escritor não é prisioneiro de uma única língua.” Será que a ideia de exílio e a figura do exilado foram raptadas pela brigada do “moralismo lacrimejante” que se esqueceu de perguntar aos exilados como é que eles sentiam o exílio? Será possível que o exílio seja uma experiência libertadora que desobriga os escritores da fidelidade atávica para com a nação, tornando-os exclusivamente cidadãos de si? Não creio. Kundera reconhece que “cada um vive o exílio à sua maneira inimitável e a experiência de Linhartova é um caso limite” (mas cuja ideia central não se distingue da de Bolaño). E nessas experiências múltiplas encontramos a dor dos desenraizados, o “mal du pays”. Linhartova e Bolaño comportam-se como aquelas pessoas que, depois do divórcio, aproveitam para condenar todo o sentimentalismo e rejeitar qualquer possibilidade de felicidade conjugal. Olham com condescendência os românticos incuráveis que sofreram longe da terra. Ao escritor austríaco Jean Améry (1912-1978), baptizado como Hanns Mayer, a pátria suscitava sentimentos ambivalentes. Judeu, perseguido e aprisionado em Auschwitz, revoltou-se contra a pátria que o maltratou, mas não deixava de sofrer por lhe ter sido extirpada uma parte fundamental da sua identidade. No discurso Literatura e Exílio, Roberto Bolaño perguntava se se podia ter nostalgia por uma terra onde se esteve a ponto de morrer, se se podia ter nostalgia pela pobreza, pela intolerância, pela prepotência e pela injustiça. Améry também tinha feito questões parecidas: “Que era então aquela saudade da terra nesses que o terceiro Reich banira por virtude das suas opiniões políticas ou da sua árvore genealógica?” perguntava, para responder: “A minha saudade da terra, a nossa saudade da terra, era a alienação de nós mesmos.” (A Humanidade Perdida, Alain Finkielkraut, Ed. Asa, p. 121) Não a saudade da terra, mas a saudade do que somos. O exílio forçado liberta? Talvez. Porém, como escreveu Améry, o melhor é “ter uma terra própria para não se precisar dela”. A terra onde estão os nossos mortos e à qual, queiramos ou não, estamos sempre a regressar.