Fernando T.
Saí entorpecido da casa da minha mãe. Tínhamos comido um queijo fresco, bacalhau à Brás, que repeti, e bebido vinho de pacote, áspero, ordinário. Fiquei no patamar, de luzes apagadas, a fumar um cigarro e a olhar para as janelas dos prédios em frente. Gosto do prazer clandestino de fumar no escuro. Foi isso que pensei naquele momento. Desci as escadas. Tive a impressão de noutros tempos haver ali mais vida, mais gente a subir e a desce, mais suspiros de cansaço, e que, mesmo de fora, se ouviam os rumores, a pesada respiração animal do interior das casas: vozes televisivas, brinquedos arrastados pelo chão de tacos, barulho de portas a abrir e fechar, o som das facas a cortarem cebolas, o baque mínimo das lâminas nas pedras da bancada, as panelas cheias de água a pousarem sobre o fogão, os fósforos riscados na lixa das caixas, os arames da roupa a gemer nas roldanas perras, o sobressalto dos pássaros nas gaiolas, as unhas de um cão nervoso na porta de madeira, um latido, risos de gente infeliz, o fundo sonoro e monótono de dezenas de frigoríficos, gritos de uma mãe e, ao longe, nas traseiras do prédio, o estrépito das garrafas de vidro a caírem nos tambores do lixo numa explosão de cristal. Tinha sido há muitos anos. A confusão amainou, como uma tempestade que se dissipa. O prédio tornara-se um corpo doente, na fragilidade nua do cimento, no silêncio não de um corpo que repousa, mas de um que se prepara para morrer. Quando cheguei à rua ouvi uma voz: “Ei!” Depois mais nítida: “Ei! Bruno!” Procurei-a na escuridão, os candeeiros tinham as lâmpadas fundidas. Vi uma silhueta. Quem seria? Sem dúvida que me conhecia. “Como é que é?” Estava mesmo à minha frente, mas não o conseguia reconhecer. “Não te lembras de mim?” E então lembrei-me. Não era possível. Era o Fernando. Ali estava ele. Sempre igual. Não mudara nada desde que eu saíra do bairro. Sorrimos, justos. Caminhámos juntos pelos labirintos dos prédios. Descobrimos que, afinal, pouco tínhamos para dizer um ao outro. “Passaram o quê? Nove anos?”, perguntei-lhe. “Sim, nove anos, no dia 26 de Dezembro de 1999”, respondeu-me. Foi então que apontou para a cabine telefónica em frente da antiga junta de freguesia. “Foi ali. Ali mesmo. Lembras-te?” A minha memória falhou. Teria sido mesmo ali? “Ali. No dia 26 de Dezembro de 1999. Foi ali que me mataram.”