Sede
Os amores de infância duram para sempre, como múmias. Dão-se bem com corações áridos, como múmias. São mausoléus erigidos à própria ideia de amor. Sobrevivem. Sobremorrem. Persistem. Cuidamos deles como da campa de um ente querido, sabendo que debaixo da terra só há ossos e mais terra. Honramos o nosso sentimentalismo putrefacto, sórdido. Duram para sempre, esses primeiros amores. Resistem como parasitas. A sua força é tão maior quanto menos real for o seu objecto. Uma recordação, uma menina a acenar numa estação e à medida que o comboio se afasta, o vulto branco da menina agiganta-se. Quando ela desaparece, o amor instala-se. Um amor coberto de memória e, por cima, outra camada de amor, que pode ser a lembrança de outro amor mais recente que serve para envernizar aqueloutro, velho e oxidado, o que não morre, relíquia de si próprio. Amamos o quê? A infância. As nossas pernas de criança, o nosso sorriso de criança, a nossa fome, a nossa sede de criança. Quando interrompíamos os jogos de futebol e íamos beber água de um garrafão que alguém trouxera de casa. Uns bebiam sôfregos, os lábios na boca do garrafão, um quase beijo de sede e água, outros bebiam prudentes, no fim cuspiam a água, cada um matava a sede à sua maneira, como os homens de Gideão, e no fim éramos trezentos, cada um escrevendo o seu destino pela morte que dava à sede, a sede mais real que existe: “Quem beber daquela água não terá mais amargura”, “quem beber da água que eu lhe der, nunca mais terá sede”. A água final para a sede toda. Essa sede de criança que é toda amor, os corpos suados no suplício do Verão, os jogos de futebol retomados, os nossos músculos, os nossos corpos a explodir. Os amores de infância são estilhaços dessa explosão, cicatrizes da guerra que é respirar, cair, sangrar, a guerra que é ter mais um dia, com a consciência das crianças que é ainda tão fina e frágil, tão próxima do nada de onde emergiu que é quase uma espécie de recém-morte. A nossa sede nessas tardes de futebol, desaparecia o sol e nós continuávamos, persistíamos, como se o corpo nos dissesse “continua”, como se os ossos e os músculos, tudo o que há-de ser lama debaixo da terra, mergulhassem na lama do cansaço e nunca mais quisessem sair, como se o tempo fosse ilimitado, extensível, fulgurante. E era. Do altruísmo inédito, virgem, do primeiro amigo – do momento em que após o choque, a fractura da consciência com o mundo, surge um amigo, o primeiro amigo (a minha mãe dizia-me “é um menino da tua idade”), o primeiro outro, e a fenda que antes se abriu entre nós e o mundo agora se fecha subitamente com a presença física, inequívoca de um amigo, outro que não sou eu mas que sou eu, que vê as coisas à mesma altura, o aquário que havia naquela sala que não era a minha sala, a luz azulada do aquário, o amigo a explicar-me os peixes e o aquário, porque não era eu, era ele, e ele sabia mais – ao impulso egoísta da conquista e do poder, de tomar o outro que nunca seremos nós, a mulher, que nunca somos nós, que ou é nossa desde sempre ou que nunca será nossa, por isso os fracos, as eternas crianças no amor, dizem “se não és minha, não vais ser de ninguém”, porque ser e ter, tenho-te logo és, é a mesma coisa, nesse intervalo da amizade ao primeiro amor nós morremos para os outros e nunca mais poderemos dizer sem mentir “porque era ele, porque era eu.”