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Circo da Lama

"Se ele for para a Suiça, não lhe guardo as vacas", David Queiroz, pai de António, vencedor da Casa dos Segredos

"Se ele for para a Suiça, não lhe guardo as vacas", David Queiroz, pai de António, vencedor da Casa dos Segredos

Circo da Lama

06
Out17

No escurinho do cinema

Bruno Vieira Amaral

Crónica publicada na GQ de Abril de 2017

 

Ah, a nostalgia de tudo! De certeza que já houve um poeta, publicado ou por publicar, celebrado ou anónimo, a escrever palavras idênticas. Um poeta que se lembre do sabor do pão com manteiga e açúcar, de um carrinho verde numa varanda de verão, de uns desenhos animados em que um passarinho tingia as pétalas de uma flor com o sangue sacrificial do seu peito, da luxemburguesa de olhos verdes que venceu o Eurofestival em 1983, de Debra Winger a despedir-se dos filhos numa quarta-feira de Lotação Esgotada, enfim, das quatro salas de cinema do Feira Nova, ali no Lavradio, onde certamente esse poeta terá passado a adolescência no escuro a voar com Goldie Hawn nas margens do Sena, a enfrentar aracnídeos num planeta distante, a assistir deliciado aos gritor de puro pavor de Neve Campell.

Já regresso ao cinema porque, como diz ali em cima, a crónica deste mês é sobre cinema e não quero frustrar as justas expetativas do leitor habituado a confiar nos títulos (podia falar de quão enganadores são alguns títulos de filmes, mas não é o momento para isso). Antes, devo referir que há umas semanas estive na Índia, facto nada extraordinário visto que a Índia é habitada por mais de mil milhões de almas e visitada anualmente por 8 milhões de turistas. Nada extraordinário a não ser para mim, gota perecível num mar de gente, mas ainda assim gota individual e com memórias, que é o que conta. Bem, foi na Índia que conheci Javier Montes, escritor espanhol, e o ouvi a ler um excerto em inglês do seu livro mais recente, Varados en Río, que, como o título indica (confiemos no título, uma vez mais), é sobre o Rio de Janeiro, cidade maravilhosa, de encantos mil, pela qual este asturiano loiro se apaixonou sem ver correspondida a sua paixão – deve ser isto a globalização. No referido excerto, o narrador conta uma insólita ida ao cinema. Viu o anúncio de uma sessão no jornal, dirigiu-se ao local para descobrir com algum espanto e inquietação que a sessão era exibida na sala classe média de uma casa particular. Mais perplexo que temeroso, deixou-se ficar na companhia de desconhecidos para ver o filme e compara essa experiência à dos cristãos primitivos nas catacumbas. Prossegue com a analogia religiosa dizendo que, assim que as luzes burguesas da casa “muy vivida” se apagaram, ouviu na sua cabeça as palavras daquele homem que nunca escreveu nenhuma: “onde estão dois ou três reunidos em meu nome…”

Regresso, pois, ao meu cinema, após esta breve excursão cine-místico-tropical ma non troppo, ao cinema de quatro salas do Feira Nova, já encerrado e pelo qual ninguém chorou, ninguém fez petições, ninguém organizou vigílias como é habitual sempre que encerra um desses cinemas monumentais, de arquitetura majestosa e cortina bíblica. Não, as salas do Feira Nova eram acanhadas, idênticas a tantas outras salas comerciais por esse mundo fora e, no entanto, foi ali que, em muitas tardes de segunda-feira, com os bilhetes a 350 escudos, vivi, viajei e comunguei do sonho que é a essência da religião do cinema. Muitas vezes, quase sempre, sozinho, rodeado de desconhecidos, porém com essa certeza reconfortante de que estávamos imbuídos do mesmo espírito, que partilhávamos a mesma fé, que quando regressávamos à luz do dia e a primeira coisa que víamos era o interior devoluto do que havia sido uma hamburgueria vínhamos transfigurados, com os olhos a habituarem-se à claridade, como se tivéssemos bebido um pouco de verdade, mesmo que o filme fosse medíocre.

Durante alguns anos, e não os mais infelizes, cultivei esse hábito de ir sozinho ao cinema. Foi assim que vi Buffalo 66, Felicidade e Disponível para Amar, no King, A Corda e Mãe e Filho, na Cinemateca, Conto de Outono, no Nun’Álvares e Vertigo no exíguo espaço do Cine-Clube do Barreiro, numa sessão quase tão doméstica e clandestina como a que Javier relata no livro dele. Há poucos dias voltei a ir ao cinema sozinho, o que já não acontecia há oito anos, quando fui ver Gran Torino nas salas que vieram substituir as do Feira Nova. E lembrei-me dessas segundas-feiras sagradas em que apanhava o autocarro perto de casa, saía na rotunda do Lavradio, caminhava até ao cinema, comprava o bilhete com o dinheiro certo, assistia a um filme qualquer e, no final da liturgia, regressava ao mundo real pairando acima dessa realidade. Como Goldie Hawn nas margens do Sena.

18
Set17

As manhãs são mais perversas do que as noites

Bruno Vieira Amaral

Pequeno-almoço no hotel. Mesa redonda para seis pessoas ocupada por três, casal de meia-idade e a filha a caminho do final da adolescência. Cruzo-me com a rapariga que leva um prato com pedacinhos de melancia e abacaxi. Cedo-lhe passagem no corredor apinhado, trocamos um olhar rápido de cortesia. Não é o olhar que um homem e uma mulher trocariam porque ela, não sendo inocente – não há inocentes neste mundo –, ainda não conhece o pecado a ponto de o desejar ou temer. “Um dia também eu irei pecar” (é o que ela diz ou eu oiço), pensamento que lhe acode ao espírito sem pressa nem excessiva convicção, sem entusiasmo nem temor, como quem pensa “um dia estarei aqui como hoje estão os meus pais.” A mãe é alta, bonita, arranjada e com certas marcas do tempo que na mulher madura não são apenas admissíveis mas desejáveis. O marido, esse, grisalho e anafado, parece um urso doméstico ou um corpulento e preguiçoso cão de guarda. Falta-lhe a competição interna no corpo de um filho varão. Sem esse acicate, a sua virilidade foi lentamente suavizada. A filha, esqueci-me de dizer, não é muito bonita e, como não conhece o pecado nem o deseja, ainda não tem vaidade. A vaidade é prerrogativa da mãe que, palpito, continuará a ofuscar a filha durante muitos anos e será uma preciosa fonte de angústia para o futuro genro. Estão os três a olhar para os respectivos telemóveis. É sábado de manhã, o céu está limpo e não há nada que se compare à perversidade latente de uma família normal.

15
Set17

Fernanda Borsatti

Bruno Vieira Amaral

Há actores que precisam de uma voz extraordinária, de saber dançar, de mil e um talentos, gente versátil que faz comédia e drama, e há outros que nascem actores mesmo que nunca venham a pisar um palco, a ter uma câmara apontada na sua direcção. Têm presença e carisma. Vejam, presença e carisma remetem para o religioso e haverá nessas pessoas algo de original, de arquetípico e de irredutivelmente estranho, como nas efígies quase irreconhecíveis de moedas recuperadas por arqueólogos. São pessoas cujos rostos se gravam na nossa memória, que nos inquietam como se contivessem uma qualquer qualidade essencial e terrível. Peçam-me para dizer uma personagem memorável que Fernanda Borsatti tenha representado e tenho de confessar que não sei. Mas aquela cara tinha em si todas as Ifigénias, Antígonas, Ladies Macbeth, Cleópatras, era uma cara contemporânea de todas as tragédias do passado. Faltava-lhe a beleza previsível e banal da burguesia, indispensável a certos papéis delicados e esquecíveis, mas, como escreveu Agustina, “certa beleza da burguesia é vulgar e não [vale] os atávicos defeitos duma raça”. Diz-se que o rosto e as suas linhas contam a história do indivíduo. O de Fernanda Borsatti contava a história de impérios desaparecidos, de linhagens moribundas e persistentes, não importa quais.

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08
Set17

A Ressurreição dos Gatos

Bruno Vieira Amaral

Crónica publicada na GQ de Março de 2017

 

Quando eu era pequeno, quatro ou cinco anos, à noite a minha mãe lia-me histórias da Bíblia. Entre as muitas histórias – da arca de Noé aos padecimentos de Jó, da mula de Balaão à aventura de Jonas a caminho de Nínive, do desgosto de Moisés às portas da Terra Prometida à destruição das muralhas de Jericó – recordo-me de duas sobre ressurreições. Na verdade, lembro-me de três, mas a história da ressurreição de Jesus era outra coisa, era o próprio fundamento da divindade de Cristo. As outras eram mais prosaicas – tão prosaicas quanto um milagre pode ser. A mais conhecida é a de Lázaro, irmão de Marta. Quatro dias após a morte de Lázaro, Jesus chega ao sepulcro e, apesar de o cadáver deitar cheiro – e como eu consigo sentir o odor da putrefacção do corpo que mais não é do que um conjunto de palavras num livro sagrado ainda me impressiona –, ordena-lhe que se levante e ande e Lázaro, amortalhado, regressa atónito à luz do dia, ao mundo dos vivos (lembram-se da cena do filme Inteligência Artificial quando os extra-terrestres concretizam o desejo do menino robô de rever a mãe, do estado em que a mãe desperta desse sono de séculos?).

A outra história era a da filha de Jairo. Este pede a Jesus que cure a filha. O estado da menina é grave. Mas, a caminho da casa de Jairo, Jesus é interpelado por uma mulher que sofre de hemorragias. Entretanto, a filha de Jairo acaba por morrer. Ao chegar ao local, Jesus encontra os familiares a chorar a morte da menina, mas diz-lhes que não se devem preocupar porque ela apenas dorme. Entra no quarto e diz-lhe: “Talita, cumi” ou “Menina, levanta-te.” É um episódio interessante porque Jesus, em vez de tirar partido do milagre, parece querer convencer os familiares de que a menina não tinha morrido.

Mais de trinta anos após esses tempos em que a minha mãe me lia histórias bíblicas, agora é a minha vez de ler à minha filha contos de fadas, histórias da carochinha. Nestes contos há muitas mortes mas também há, pelo menos, duas ressurreições – a da Bela Adormecida e a da Branca de Neve. Eu e a minha mulher discutimos sobre a forma adequada de ler as histórias: deveríamos ou não dizer que tinham morrido? Seria melhor dizer que estavam apenas a dormir, como Jesus disse aos parentes de Jairo? Como alguém na escolinha lhe tinha dito que as pessoas, quando morrem, vão para o céu, eu mantive a versão, embora garantindo que quer a Branca de Neve, quer a Bela Adormecida, não tinham ido para o céu. Mas, no fim, ambas as personagens acabam por se levantar e andar, ressuscitadas pelo milagre do amor anunciado. Tudo acaba bem.

Semanas depois, ao ler-lhe a história de uma toupeira que queria agarrar a lua, a minha filha disse-me que sabia onde era a lua, era o sítio onde estava a mãe da avó Fátima. Não a contrariei. Sim, talvez os mortos vão para a lua e o céu seja apenas um deserto de estrelas. E, acrescentou a minha filha, era também na lua que estava o “gato morrido”. Uns tempos antes, ao sairmos de casa, deparámo-nos com um gato morto junto ao nosso carro. A minha filha quis tocar-lhe porque enquanto eu via um gato morto, com um fio de sangue na boca, ela via um gato deitado, a dormir pacificamente. Sem pensar, disse-lhe: “está morto.” A minha mulher ficou chocada, mas era tarde demais. Nos dias seguintes, à noite, a minha filha só falava no “gato morrido” e quando chegávamos perto do passeio onde, dias antes, o cadáver do gato repousava, perguntava-nos para onde tinha ido e eu respondia que se tinha ido embora, enredando-me em contradições que até a mim me faziam duvidar acerca do real destino do gato. Então, uns dias depois, no mesmo local, vimos um gato muito parecido com o outro e a minha filha disse logo: “está ali o gato morrido.” Eu, feliz por poder reparar o meu erro, confirmei: “pois está.”

Eu sabia que era outro gato, caro leitor, mas se não há mal nenhum em acreditar que os nossos mortos vão para o céu, que as princesas despertam de sonos de cem anos quando beijadas por príncipes, que os príncipes se apaixonam por donzelas em caixões de vidro e que até o acaso pode ressuscitar uma princesa que trincou uma maçã envenenada, qual Eva incapaz de resistir à tentação, também não é errado acreditar que pobres gatos suburbanos e cinzentos podem voltar a viver. Não se trata de poupar as crianças às agruras da realidade ou de as fazer acreditar em histórias da carochinha, mas a de partilhar a certeza de que os gatos “morridos” continuam a viver em nós sempre que nos lembramos deles, que Lázaro, a filha de Jairo e a mãe da avó Fátima continuam vivos através das histórias que as nossas mães nos contavam, que nós contamos aos nossos filhos e que eles, um dia, irão contar aos nossos netos.

29
Ago17

Hiroshima, meu amor

Bruno Vieira Amaral

Há dias, passei em frente da casa de uma antiga colega da escola secundária. Presumo que já não viva ali. Há uns anos, vi pendurada numa janela uma dessas placas das imobiliárias. Era uma rapariga tímida, timidez que, porém, só consumia uma parte do seu encanto. Éramos próximos, mas não íntimos. Uma vez, já perdi a conta aos anos, convidei-a para irmos ao cinema. Hiroshima, meu amor. Nunca beijei esta rapariga, nunca fizemos amor, nunca nada. Mas eu vi no olhar dela, à saída da sala, aquele brilho baço que só desce sobre as mulheres depois de um orgasmo. Estava perturbada, isso sei, e penso que me perguntou porque é que a tinha convidado para ver aquele filme. Porquê? Queria que ela me amasse? Não sei. Queria marcá-la, queria que o corpo dela estremecesse e os pensamentos explodissem e o coração batesse à velocidade do cinema, vinte e quatro batimentos por segundo, e queria que ela, por muitos homens que viesse a conhecer, nunca mais esquecesse aquela noite. E, afinal, tantos anos depois, a única certeza é a de que eu não me esqueci. Tudo é vaidade.

28
Ago17

A vida ao ritmo das redes sociais

Bruno Vieira Amaral

A presidente da CIG afirmou que a decisão de recomendar a retirada dos livros da Porto Editora do mercado foi uma resposta ao clamor nas redes sociais: “nós recomendámos tendo em conta a polémica que estava nas redes sociais […] recomendámos à Porto Editora que pudesse retirá-los para apaziguar de alguma forma os ânimos e permitir com alguma serenidade olhar para os conteúdos”. Ou seja, primeiro recomenda-se a suspensão da venda e depois é que se vai olhar com alguma serenidade para os conteúdos. Teresa Fragoso nem sequer precisava de dizer que foram as redes sociais a impor uma decisão rápida, mas, ao mesmo tempo, procurou demonstrar quão perniciosas eram as diferenças entre os livros escolhendo os exemplos mais convenientes, fazendo o que se chama cherry picking. Ricardo Araújo Pereira fez o exercício contrário e demonstrou o que já sabíamos: o clamor nas redes sociais é, quase sempre, o ruído da ignorância, quando não da má-fé. Os indignados querem indignar-se e não admitem que os factos sirvam de corta-fogo aos incêndios virtuais. Houve quem exigisse saber o nome dos autores dos livros, certamente com propósitos pedagógicos de humilhar, insultar e ofender, mas provando que nem sequer tinham visto os tais blocos de actividades, não que isso interesse muito quando a indignação, como os incêndios de Verão, já está descontrolada e tem várias frentes activas. A Porto Editora, também atordoada, foi lesta a anunciar a retirada dos livros do mercado, sempre ao ritmo imposto pelas redes sociais. Agora parece que mudou de estratégia, mas, quanto a mim, o mal estava feito: a obediência imediata teve o cheiro da capitulação ou, ainda pior, da minimização de danos, expressão corriqueira nos departamentos de comunicação das empresas sempre que as chamas das redes sociais lhes chegam às portas. Como era de esperar, aquele momento didáctico de Ricardo Araújo Pereira teve já uma grande repercussão, mas nem isso foi suficiente para aplacar a fúria justiceira de alguns. “Está bem, o caso não é assim tão grave, mas a luta pela igualdade de direitos é justa e isso é que interessa”, dizem, e siga para bingo. Logo após estalar a polémica, o pediatra Mário Cordeiro deu uma entrevista ao Expresso em que dizia não estar de acordo com a recomendação e sustentava a sua opinião. Respostas de alguns indignados: é faccioso, deve ter interesses obscuros para ser tão parcial, não gosto da pinta dele. Porém, aquilo que na minha opinião é mais grave é constatar a facilidade com que milhares de pessoas aceitaram a bondade de uma recomendação para a retirada de um livro do mercado. Dou de barato a ignorância em relação ao conteúdo dos livros. Afinal, ninguém frequenta as redes sociais à espera de encontrar opiniões fundamentadas e que resultem de uma análise aprofundada dos factos. Mas é preocupante que uma tal recomendação encontre semelhante acolhimento numa sociedade. Recomendar a retirada de um livro do mercado (aos que, em defesa da CIG, dizem que não é uma proibição mas uma simples recomendação, realçando a bondade das intenções da comissão, lembro que, felizmente, esta não tem poderes para decretar a proibição de um livro, mas é claro que se tivesse, isso também não perturbaria muita gente) é uma decisão grave que não pode ser tomada num clima definido pela excitação das redes sociais. Poderia até ser justa (e já se provou que não é), mas isso dificilmente aconteceria quando a presidente da comissão admite que o ruído das redes teve um peso decisivo na recomendação. Estas indignações são cíclicas e de curta duração, mas, enquanto duram, criam a ilusão de ocupar todo o espaço mediático disponível. É assim o tempo das redes sociais, mas não pode ser esse o tempo de um comissão como a CIG, por uma vez transformada em tribunal instantâneo das boas práticas editoriais. A CIG solicitou pareceres independentes para fundamentar a decisão? Em que consistiu a “avaliação técnica” que diz ter feito? Ouviu a editora? Ouviu os autores? Fez uma análise de outras publicações equiparáveis? Não fez porque esse processo requer tempo e quando o tempo é fixado pelas redes sociais nunca há tempo. Não se pode “pedir às redes sociais” que respirem fundo, reflictam e só depois se pronunciem. Mas isso é o mínimo que se pode exigir a um organismo público que recomenda, com certa leveza de espírito, que um livro seja retirado dos pontos de venda.

16
Ago17

Detestava o desleixo

Bruno Vieira Amaral

“Jelisic começava por recolher o dinheiro, os relógios e as jóias dos detidos. Não raro, batia-lhes. Fazia isto diante da namorada, Monika, que às vezes visitava o campo porque era o irmão quem o chefiava. Em seguida, os prisioneiros eram obrigados a sair do hangar, um a um. Jelisic ordenava a um homem que se ajoelhasse e encostasse a cabeça a uma grelha metálica de escoamento. Depois matava-o com dois tiros na nuca, usando uma pistola com silenciador. Durante um ou dois minutos antes da execução, o homem escolhido implorava que lhe poupasse a vida. “Não me faça isso. Porquê eu? Não fiz nada.” Mas não adiantava. Antes de o matar, Jelisic insultava a mãe do prisioneiro. Na verdade, quanto mais medo este demonstrava, maior o prazer do algoz. A seguir, dois prisioneiros transportavam o corpo para um camião-frigorífico utilizado para levar os cadáveres para uma vala comum e Jelisic mandava lavar a grelha. Detestava o desleixo.”

Não Faziam Mal a Uma Mosca, Slavenka Drakulic

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 Goran Jelisic executa um prisioneiro a 7 de Maio de 1992

11
Ago17

Barbosa e os guarda-redes negros

Bruno Vieira Amaral

Há 23 anos que a equipa principal do Benfica não apresentava um guarda-redes negro. O jovem Bruno Varela sucede a Neno, o último negro a defender a baliza do Benfica. Pode ser uma simples curiosidade de almanaque, mas a verdade é que fazer um onze do Benfica dos últimos 23 anos só com jogadores negros é relativamente fácil. O grande problema é mesmo encontrar um nº 1. Vejamos: na defesa teríamos Luisão, Alcides, Okunowo, Zoro, Edcarlos, Nelson, Nelson Semedo, Sidnei, Miguel, Hélder, José Soares, Eliseu, Armando; no meio-campo, Michael Thomas, Manuel Fernandes, Binya, Sabry, Balboa, Amaral, Carlitos, Edilson, Ramires, Talisca; no ataque, Mantorras, Geovanni, Makukula, Javier Balboa, Suazo, Manú, Brian Deane. Suficiente para constituir um plantel. Só falta o guarda-redes, que não poderia ser nenhum destes: Júlio César, Quim, Ederson, Robert Enke, Paulo Lopes, Moreira, Oblak, Roberto, Butt, Artur, Júlio César, Mika, Eduardo, Paulo Santos, Moretto, Rui Nereu, Preud’Homme e Bossio.

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Bem, mas Varela é apenas pretexto para falar de Moacir Barbosa Nascimento, guarda-redes do escrete no Mundial de 1950 perdido no Maracanã para o Uruguai de Ghiggia. Ora, o pobre Barbosa era negro e, por esse motivo ou simplesmente porque o guarda-redes é sempre o alvo mais fácil, foi o bode expiatório da enorme decepção brasileira. Reza a lenda que os pais apontavam Barbosa e diziam aos filhos que aquele era o homem que tinha feito o Brasil chorar. O próprio Barbosa dizia que era o único brasileiro que tinha cumprido uma pena superior a 30 anos.

Em 1994, no Mundial dos EUA, uma equipa de televisão levou o velho Barbosa para falar com Cláudio Taffarel, o loiro que defendia as redes do escrete. Temendo que Barbosa contaminasse o alto astral da equipa, o supersticioso Mário Zagallo, então adjunto de Carlos Alberto Parreira, terá dado ordens para manterem o ex-goleiro bem longe dos jogadores. Nesse ano, o Brasil foi campeão, mas só doze anos depois é que um negro voltou a ser o guarda-redes titular indiscutível da selecção brasileira num Mundial. Dida, que jogava no Milan, quebrou a maldição e, de então para cá, houve vários guarda-redes negros brasileiros em destaque no futebol internacional, como Helton ou Heurelho Gomes.

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Essa reabilitação do guarda-redes negro não impediu que, até ao fim da vida, Barbosa continuasse a ser a cara da célebre derrota. Morreu em 2000, dizem que de tristeza prolongada. A filha adoptiva, Tereza Borba, lembra que no dia do jogo com o Uruguai os vizinhos de Barbosa tinham preparado um banquete na rua. Quando regressou a casa, Barbosa encontrou a mesa posta e farta, a imagem paradoxal da desolação: “nem os cachorros atacaram a mesa. Parecia que o mundo tinha parado. Isso ficou marcado na memória dele: uma mesa abastada para um banquete enorme e ninguém quis comer.”

Barbosa só foi vingado com o Mineiraço do mundial de 2014, os 7-1 com que a Alemanha dizimou o Brasil na meia-final. Foi preciso uma humilhação olímpica para que o Brasil perdoasse o guarda-redes de 1950. Na baliza do escrete, nessa terrível noite de Belo Horizonte, estava o actual guarda-redes do Benfica, Júlio César. Ainda é cedo para dizer se Bruno Varela será o titular do Benfica esta época, mas deixo-lhe o conselho de se manter afastado do Maracanã. É que uma das piores noites da carreira de Neno foi no mítico estádio do Rio de Janeiro, numa das poucas ocasiões em que defendeu a baliza da selecção portuguesa. Foi a 8 de Junho de 1989 e Portugal perdeu por 4-0. Naquela noite, foi ele o Barbosa.

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01
Ago17

Uma intelectual de direita

Bruno Vieira Amaral

“P. Sendo a figura cultural que é, como é que reage à circunstância de a maioria esmagadora dos intelectuais portugueses terem neste momento, uma opção eleitoral tão diferente da sua [Agustina apoiava a candidatura de Freitas do Amaral nas Presidenciais de 1986]?

R. Aqueles que se podem aproximar da minha área, não profunda, mas, pelo menos, superficialmente, serão pessoas um pouco saudosistas, um pouco situadas no regime anterior. Não as ignoro, são pessoas perfeitamente respeitáveis. Mas, hoje, depois da II Guerra Mundial, tornou-se uma espécie de marca, de ferrete não ser uma pessoa de esquerda. Basta o nome para as pessoas ficarem um pouco tranquilizadas. Evita-lhes muitas complicações. E as pessoas, mais ou menos, estão todas dependentes umas das outras. Ou, pelos seus empregos, ou pelos seus lugares, ou pelas suas necessidades de se orientarem na vida, sobretudo, depois dos 30 anos. Às pessoas que, como dizia o poeta Heine, já compraram o seu serviço de chá, de porcelana, é muito difícil evitar estilhaçar ou perder a asa de uma chávena… Sobretudo, no campo da política, a pessoa começa a dizer «ele é fascista» ou «se ele pensa desta maneira é porque é fascista e é porque, nesse caso, já teria apoiado os campos de concentração, e, nesse caso, até já teria sido, possivelmente, um dos que aplaudiram os discursos do Hitler». E coisas assim. A imaginação não pára mais e as pessoas, a certa altura, estão perfeitamente paralisadas de terror. É um novo terrorismo.”

Agustina por Agustina entrevista conduzida por Artur Portela

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31
Jul17

A fé intelectualizada em Silêncio

Bruno Vieira Amaral

Mais do que a questão de se saber se o Cristianismo poderia prosperar no terreno pantanoso do Japão ou se, prosperando, ainda seria o mesmo Cristianismo ou, ao invés, uma versão de tal forma adulterada e niponizada que já nem poderia ser considerada a mesma religião, o verdadeiro confronto no livro (e no filme) é entre a fé intelectualizada dos padres (nomeadamente de Sebastião Rodrigues) e a fé simples, porém avassaladora, dos crentes japoneses. Para Rodrigues, fé e apostasia são conceitos teóricos. Para os Kirishitan, são experiências. Por isso, a apostasia de Rodrigues é mais expectável e natural do que a apostasia dos camponeses. Ele está mais próximo da visão dos inquisidores que lhes dizem que aquilo não passa de uma formalidade. Ora, aqueles para quem a fé é algo que se manifesta totalmente nos rituais, não há diferença entre a renúncia formal e a renúncia genuína, de coração. Só para aqueles que separam os conceitos – e Rodrigues é um deles – o pisar de uma imagem de Cristo pode ser diferente de pisar o próprio Cristo. Aos camponeses, que tinham sido introduzidos em mistérios como os da transubstanciação, não se lhes podia simplesmente exigir que esvaziassem o acto de pisar o fumi-ye da substância divina da imagem. O corpo de Cristo tanto está na hóstia como no objecto que devem pisar.

A dissonância entre Rodrigues e os japoneses expressa-se de forma mais integral na cena em que, encarcerados, falam sobre o paraíso. Rodrigues faz um esforço para se adaptar à literalidade dos crentes para quem o paraíso não é uma ideia, uma aspiração vaga, é uma realidade imediata que os espera. A única forma que Rodrigues tem de suportar o seu martírio é o de, uma vez mais, o intelectualizar, vendo, neste caso, o seu sofrimento à luz do calvário de Cristo. Esse orgulho e essa vaidade não passam despercebidos aos inquisidores dos quais, na verdade, Rodrigues está bem mais próximo do que dos camponeses. Rodrigues é levado às portas do martírio não pelo despojamento e pela humildade, mas pelo orgulho, pela racionalização. E é precisamente por esse motivo que fica à porta do martírio incapaz de dar o salto (ou mergulho, como no caso de Garupe) de fé.

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