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Circo da Lama

"Se ele for para a Suiça, não lhe guardo as vacas", David Queiroz, pai de António, vencedor da Casa dos Segredos

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Circo da Lama

06
Nov17

A Beleza da Destruição

Bruno Vieira Amaral

Crónica publicada na GQ de Maio de 2017

 

Já sobrevivi ao fim do mundo. Foi há mais de vinte anos, num domingo. Nas semanas anteriores, uma astróloga cujo nome não recordo previu um grande terramoto para Lisboa. Ainda não vivíamos na era da Internet, nem das notícias falsas, mas o Jornal do Incrível era incrivelmente popular, com os seus extra-terrestres e bezerros de duas cabeças. Assim, aquele domingo foi vivido com uma sombra de angústia, o risinho nervoso de quem não acredita em bruxas pero que las hay… O dia passou, e foi um radioso domingo de sol, o mundo não acabou e o terramoto não aconteceu, nem sequer o mais leve tremor de terra, daqueles que só são sentidos pelos sismógrafos mais sofisticados e pelos periquitos mais sensíveis.

Comecei pelo fim do mundo para chegar à notícia da publicação do segundo volume da monumental tradução da Bíblia grega por Frederico Lourenço. Depois dos evangelhos, o leitor recebe o que faltava do Novo Testamento. Peço desculpa se já vos perdi no início da minha homilia. Aos resistentes digo que pretendo apenas falar do último livro, o Apocalipse ou Livro da Revelação, esse documento estranho, escatológico, profético, visionário, psicadélico, caleidoscópico, aterrorizador e, como afirma o tradutor, escrito num grego excêntrico. Um dos grandes mistérios da feitura da Bíblia é o de se saber como é que o Apocalipse nunca foi retirado do cânone. No século III, um discípulo de Orígenes de Alexandria declarou-o apócrifo e a igreja teve de se empenhar na luta contra as interpretações literais do texto.

Ateus, agnósticos e padres com vocação poética costumam apontar como livro preferido da Bíblia o Eclesiastes (o grande tratado do pessimismo), o Cântico dos Cânticos (a celebração do amor físico) ou o Livro de Job (essa oportunidade para apontar o dedo a Deus pelo sofrimento que deliberadamente traz aos que o servem). Eu prefiro o Apocalipse, um livro para os loucos, os criadores de cultos, os quiliastas, os místicos, os iluminados, os que acreditam que a verdade só pode ser encontrada nas margens da razão. Depois das epístolas ortodoxas de Paulo, o Apocalipse é como um rebentamento de liberdade e loucura, um manifesto selvagem e espiritual, repleto de imagens de fogo e morte mas também com a promessa paradisíaca de um novo tempo. É uma orgia sensorial, com os seus cordeiros, anjos, leões, sangue, pragas, ídolos dourados, dragões de sete cabeças e dez chifres, livros amargos, babilónias e “relâmpagos e vozes e trovões e um sismo e um imenso granizo.”

O lado demencial e de “fim do mundo” é tão marcante que a palavra “apocalipse”, que significa revelação, passou a ser sinómino de destruição total. A ideia de aniquilação é estranhamente fascinante porque traz com ela uma promessa de recomeço e renovação. A Bíblia tem outros exemplos, desde o dilúvio ao castigo de fogo sobre as cidades pecaminosas de Sodoma e Gomorra. Infelizmente, a humanidade não precisa de recuar aos tempos bíblicos para se assombrar com o fogo. Basta recordar os bombardeamentos das cidades alemãs durante a Segunda Guerra Mundial, de que W. G. Sebald fala em História Natural da Destruição, ou a bomba atómica sobre Hiroxima, cujo relato pormenorizado se encontra na reportagem clássica de John Hersey para a New Yorker. O horror dessas destruições é atenuado porque os alvos foram os “maus” daquela guerra. Queremos acreditar que as bombas largadas sobre o inimigo eram inevitáveis e, até, justas, como justo terá sido o castigo sobre os habitantes libertinos de Sodoma e Gomorra. Não foi por acaso que à operação sobre a cidade de Hamburgo pela Royal Air Force foi dado o nome de “Gomorra”.

Outra das razões do fascínio é mais mórbida e tem que ver com a beleza perversa e espantosa da própria destruição. Perto do final da guerra, os nazis, em debandada pela Ucrânia, foram queimando todas as aldeias por onde passavam. Numa carta enviada para casa, um soldado escreveu que aquela era uma “imagem aterradoramente bela”. Um dos sobreviventes de Hiroxima, na altura uma criança, conseguiu escapar a tempo de ver a nuvem que se elevava nos céus, recebia os raios de sol e projetava de volta as cores do arco-íris: “E que Deus me perdoe se disser que era um lindo espectáculo”, disse ele anos mais tarde.

Não sei o que haverá de tão atraente na possibilidade de destruição total: será o domínio convulsivo do terror? O ruído impossível da catástrofe? A luz e o calor mortais? A simples atração pelo abismo? O vislumbre de um novo mundo nascido das ruínas? Sei que, na minha memória, no céu azul daquele domingo em que o mundo não acabou permanece uma radiante nuvem de enxofre e que um dia, sem que saibamos a hora, ela cairá sobre nós.

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