A conspiração contra nós
Crónica publicada na GQ de Novembro de 2016:
Sala de espera do consultório. Seguro um envelope com os resultados de análises ao sangue. Já os espreitei. Tudo bem, exceto uns valores abaixo do normal. Sou um daqueles homens imperturbáveis a quem “valores alterados” soa como o toque de finados. Ali sentado, a fazer de conta de que não é nada comigo, sinto-me inquestionalvemente moribundo. Olho para as recepcionistas, saudáveis, morenas, prontas a viver até aos 120 anos, e esvai-se o pouco ânimo que me resta. Tusso. Sentimental, despeço-me das cadeiras, do balcão, dos panfletos em cima de uma mesa e das revistas de há três meses. Despeço-me de Fernanda Serrano, despeço-me de Sara Matos, despeço-me dos irmãos Carreira que pregaram um calote a alguém. Adeus, adeus. Uma das assistentes aproxima-se: “Sr. Florival Serrabulho!” Sorrio. Que nome genial! Mas, afinal, estou a rir-me de quê? Indiferentes ao meu riso, dentro de mim há legiões de eosinófilos, basófilos e plaquetas a conspirar contra a minha pessoa, contra eles próprios. “Ri-te, ri-te”, parecem dizer. Pior, não dizem nada, limitam-se a seguir o seu caminho irracional, ignorando as minhas alegrias, pensamentos, sorrisos.
Em A Doença como Metáfora, Susan Sontag alertou-nos contra as “fantasias punitivas ou sentimentais” que construímos acerca das doenças. Fantasias que até homens de inteligência superior criaram, como Schopenhauer que dizia que a “vontade apresenta-se como um corpo organizado e a manifestação da doença significa que a própria vontade está doente.” Uma vontade saudável teria “poderes ditatoriais capazes de subjugar as forças rebeldes” que, no interior do nosso corpo, conspiram para nos derrubar. Quantas vezes não ouvimos falar de doentes como “guerreiros” que “travam batalhas” contra um “inimigo”? Os que vencem a doença são fortes, embora se tenha algum pudor em classificar como fracos os que a ela sucumbem. A humanização da doença tem o único propósito de a tornar compreensível e, como tal, “combatível”. Se os agentes patogénicos são motivados por uma intenção – a de me atacar – eu posso responder-lhes com a intenção contrária – a de me defender. Passa a ser uma luta entre duas vontades. E assim, de uma penada, temos uma narrativa que responde à pergunta de qualquer doente – “porquê eu?” – e aumenta, ainda que subjetivamente, as nossas possibilidades de salvação. Quando nos acontece o mesmo que a Ivan Ilitch, quando sentimos que qualquer coisa horrível se passa no nosso interior, a forma de maquilhar a fealdade é atribuir-lhe um rosto humano, uma intenção que, embora malévola, reconheçamos como afim à nossa humanidade.
Finalmente, sou chamado. Levanto-me a custo, as pernas pesam-me toneladas, o corredor parece fechar-se sobre mim. Entro e a médica recebe-me com um sorriso luminoso. “Então o que o traz por cá?” (é claro que a médica não me falou nestes termos, devo ter lido isto no Retalhos da Vida de um Médico). É triste ter de explicar o meu incomensurável sentimento de derrota perante a vida, as saudades antecipadas que já tenho do mundo todo, incluindo das pessoas que me maltrataram e que agora, nesta agonia, relembro com um certo carinho fraternal. “Ó doutora, então não basta olhar para mim para ver logo o estado em que me encontro?” (também não lhe disse isto, é claro, em vez disso, falei-lhe de umas tonturas que me levaram a fazer análises e de uma dor no pé que, descobri na net, é capaz de ser fascite plantar, “não concorda, doutora?”. Dê-se acesso ilimitado à internet a um hipocondríaco e teremos um eterno miserável. Cada dor de cabeça é um tumor, cada espirro, uma pneumonia, cada pontada nas costas, uma doença mortal a fazer o seu primeiro e fatal anúncio.)
A médica olha para os resultados das análises e eu espio-lhe as reacções. Não me tente enganar, doutora. “Está tudo bem com as análises. Há só aqui uns valores mais baixos mas nada de preocupante.” Nada de preocupante, doutora? Tem a certeza? O Ivan Ilitch também dizia que aquilo era só uma dorzinha e veja lá o que lhe aconteceu. “Sim, nada de preocupante.” Quero ouvir outra vez essas harpas celestiais: “nada de preocupante.” E saio pela porta aos pulinhos, e pego na mão de uma senhora que aguarda a sua vez e danço com ela pelos corredores, e voo para o balcão e faço o meu número à Gene Kelly. Nada de preocupante, mundo. Nada de preocupante, pessoas. Olho para a recepcionista e já não a invejo. Lá fora, o sol ainda brilha. Como são negros os nossos terrores, como são doces as nossas fantasias.