Carrossel
A minha contribuição para o Carrossel da Flanzine:
É impossível ter certezas sobre certos acontecimentos. A proliferação de versões não conduz a uma verdade. Leva à incerteza e, por fim, como alívio, ao esquecimento. Hoje, é estranha a afirmação de que, naquela noite, ninguém viu nada, porque havia centenas de pessoas no recinto das festas e, nos dias que se seguiram, muitas falavam sobre o que tinham visto, sobre o que tinham ouvido, sobre o que outros mais bem informados tinham visto, sobre o que outros em lugares mais próximos da tragédia tinham ouvido.
Havia, como sempre, um barulho geral, eléctrico. Uma embriaguez, visão turva. Talvez por isso certos testemunhos com cópia de pormenores tenham sido desacreditados. Não porque lhes atribuíssem má-fé ou neles houvesse a intenção de desviar o curso das investigações, mas porque o diletantismo era denunciado pela volúpia no relato, pela forma mítica como descreviam as quedas das crianças nos castelos insufláveis, as camisolas piratas do Ronaldo e do Messi, o cheiro a gasóleo dos geradores, as unhas amarelas dos pés dos vendedores de estatuária africana, desenhando círculos de fábula à volta de um centro que nunca poderiam – e nem queriam - atingir. Seis meses durou o frenesi narrativo. Até que a falta de resultados das investigações policiais fez com que as pessoas começassem a evitar o assunto. Não por cansaço, nem pelo tipo de desinteresse que afecta mentes habituadas aos estímulos das novelas da imprensa da felicidade, mas por receio de que a verdade, a ser apurada, se revelasse tão terrível que ninguém que tivesse estado nas festas naquela noite a poderia suportar. Hoje, quando por distracção se menciona aquela noite desagradável de Junho, de imediato alguém avança com um conjunto de pormenores patéticos que a diluem numa espécie de corrente perpétua de memórias das festas: as alcateias de adolescentes muito pintadas a dedilharem mensagens e soltando “Foda-ses” que já não indignavam ninguém; um homem gordo e suado a cantar os números do bingo que hão-de ser a sorte de um infeliz; uma mulher gorda e suada a cortar a massa das farturas com uma intencionalidade oblíqua que sugere ódios persistentes, dívidas, traições; a rapariga que, na zona das bancas sofisticadas, oferece ginjinhas em copos de chocolate; o homem que, durante os sete dias de festa, dançou sozinho no terreiro, ao som de um acordeão nervoso, abraçado a um par invisível.
Lembro-me que, alguns meses depois, alguém amarrou uma coroa de flores a um poste. Não tinha qualquer mensagem. Ainda hoje não se sabe quem foi o autor do gesto. O que este revela é que, no meio de um desejo colectivo de amnésia, alguém ousou cravar um prego na nossa consciência. Podia ter sido uma homenagem de intenções puras. Talvez. Mas a coroa de flores assim exposta foi sentida como uma acusação à nossa alegria fútil. E só isso justifica que, na noite seguinte, a coroa tenha sido retirada por mãos anónimas, furtivas, e que reafirmavam a vontade maioritária de esquecer tudo o que acontecera. Até porque o Verão estava quase a chegar, as primeiras festas já tinham acabado e não faltava muito para regressarem as pistas de carrinhos de choque, o dragão mágico, as roulottes de cachorros e bifanas, os vendedores de tapetes, a morte de outros inocentes.