Como um pássaro cheio de luz
“Passado o primeiro claustro do Hospital de S. José, galgada a escadaria até ao segundo andar, temos outro claustro, onde a luz do dia anoitece e é sempre a mesma. Ao nosso lado, a vestimenta de ganga de um empregado que nos acompanha. Os dois, eu e ele, pouco seguros, pizamos os degraus de uma escada de ferro. A porta à direita abre sobre a enfermaria de Santo António. Começa a parte dramática, a visão da dôr escondida sob os cobertores, fria e abandonada. O rancho das duas horas róla numa carrinha. Odôr insuportável, que faz vómitos. A vidraça; a enfermaria longa onde a luz é muito pálida e o sol entra com um sorriso triste. A primeira figura de dôr é um homem que passeia, com um braço erguido por um triângulo de madeira. O empregado de vestimenta de ganga põe-se a conversar; deixa-nos à vontade e nós vamos conversar com os incomunicáveis, os que estão ali presos e feridos, como supostos bombistas. A polícia apura, não se devem lançar culpas sobre quem não pode falar. A palavra supostos, está, pois, bem. Aquilo é muito triste. Há doentes que fumam e não volvem os olhos, corpo enterrado e imóvel no meio dos lençóis sujos, quando passamos. Um rostinho de criança exangue, todo tocado de oiro antigo, onde a dôr tem resignação, cansada já. E a enfermaria é alta e triste, de janelas de vidros pálidos de luz. Conhecem a Soror Filomena dos irmãos Goncourts? Pois é assim aquilo, tal qual, com muito menos carinho, muito menos branco. Esta côr não existe naquela enfermaria. Os varais da cama, com a chapa de esmalte… esta é a 44… estão sujos; a almofada, onde a cabeça do doente descansa, gravada com as letras H.S.J., é amarela. O branco das barrelas e dos oito dias de uso gastou-se, envelheceu. Colunas que seguram a abóbada, escarradores, as camas alinhadas à parede e a carrinha do rancho que deslisa, distribuindo o arroz aguado, com pretos de coágulos de sangue. Mas nem todos os doentes estão deitados. Alguns ensaiam os primeiros passos, tropeçando os pés, como se tivessem regressado à infância, quando na relva dos jardins, a mão segura na mão da mãe que era carinhosa, que o devia ser, tentavam andar. Não há feridas à mostra; só há rostos cavados, quasi caveiras, tanto as carnes estão descarnadas.
44! O primeiro suposto bombista. Tirou a colcha; o cobertor de lã, listrado a vermelho e azul, sobre-lhe só meio corpo. Está sentado na cama. O seu estado é grave; um estilhaço duma das bombas que foi arremessada contra um eléctrico na Avenida Almirante Reis, ontem, rasgou-lhe o ventre, extravasou-lhe os intestinos num mar de sangue.
— Eu?... José… Godinho.
É um moço ainda. Pálido, o olhar húmido de tristeza, um grande perdão nas pupilas. A dôr igualou-o a todos nós. Fala-nos baixinho, a muito custo. Cara rapada, o buço está crestado de pólvora e na face branca, esquálida, a dôr murmura e fala por ele. Quando chegámos junto da sua cama, pisámos um jornal.
— Inocente?
— Sim… Eu… estou.
E aludindo ao jornal:
— Esse jor… mentiu. Não con…fe…ssei.
Não! O seu falar brando, sciciado, morre a pouco e pouco. Os lábios não aquecem a palavra. Inclinamo-nos sobre o ferido.
— Onde foi?
— Aqui. Com dôr: no baixo ventre…
— É das Juventudes?
— Sou, murmura mais baixo. Não…tenho…nada…passou…Perdi… o vapor…
E a cabeça róla triste, tristemente, muito branca. Mais nada. Saímos da enfermaria. Outra, a de S. Francisco. Há menos camas, uma pequena mesa, ao meio, onde o enfermeiro aquece qualquer remédio. Mais sossego, recolhimento, velado o sorriso do sol, distante dali. Cada cama é uma mesa anatómica; tem um corpo esfacelado. Só os corpos vivem e traduzem para nós o horror da dôr. Também não há feridas.
— Como te chamas, meu pequeno?
Um nome. Este está alegre, brinca com uma lapiseira, uma carteirita e tem muitos fascículos de romance na mesa de cabeceira. É um marçanito, cabelo preto, olhos negros que rolam, que saltitam, que ardem de alegria – a bela alegria da mocidade.
— Melhor?
— Oh! Muito melhor!
— E porque estás preso?
— Falava com um rapaz quando a bomba estalou… Foi há dias, a primeira que estalou na rua da Palma. Mas eu estou inocente…
E muito vivo, embriaga-se de falar, como um pássaro cheio de luz:
— Não estou preso… Mesmo que estivesse não me importava… a verdade saber-se-há…
O ferimento é leve: um buraco nas costas, do comprimento, do comprimento…
— Desta lapiseira.
Cama nº… não importa, esqueceu.
O cobertor tapa-o todo. A descoberto apenas a cabeça. Dorme? Talvez não, mas tem os olhos cerrados. É moreno, os ângulos do rosto estão negros, cheios de sombras que a dôr poz ali e que não desvanecerá tão cedo. É uma cabeça forte, um bronze, talhado em linhas violentas e enérgicas. As pálpebras mexeram-se; olha-nos.
— Então?
— Braços e pernas partidos.
Sobre a cama, desdobrado o jornal A Batalha, numa afirmação. Fala de seguida, triunfando da dôr a sorrir-se.
— Fizeram-me a operação esta madrugada. Não havia meio de cloroformizarem-me… Até disse aos médicos que aquilo não prestava… três injecções de soro anti-tetanico… Queres ver como estou?
O corpo aparece, com os braços enfaixados de ligaduras.
— São aparelhos, gesso e madeira…
— Como se chama…
— … Carrascalão.
— Ontem à noite…
— Ia a passar…
Fala e nem uma dôr à superfície do rosto, uma palavra que indique tristeza. Aconteceu. Não o sabe ele porquê.
Aquele rosto fica, cavado de sombras, enérgico, todo ele na sombra, sem arestas nem brancos. É uma forma de sofrer, esta, a de reagir."
Notícia publicada no Diário de Lisboa de 11 de Março de 1922.