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Circo da Lama

"Se ele for para a Suiça, não lhe guardo as vacas", David Queiroz, pai de António, vencedor da Casa dos Segredos

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Circo da Lama

06
Ago19

Livro de Kossa – Ilha da Chuva

Bruno Vieira Amaral

(Conto publicado originalmente na revista Prima.)

Em março de 1957, Nhaussacato Kossa Alberto voltou a Lourenço Marques após cumprir uma pena de seis anos em São Tomé. Na ilha, tinha sido um dos muitos “contratados” a que as autoridades portuguesas recorreram para executar o massacre de Batepá, a 3 de fevereiro de 1953. À chegada a Moçambique foi interrogado pela polícia por ter na sua posse panfletos religiosos da igreja do angolano Simão Toco. Livro de Kossa-Ilha da Chuva inspira-se livremente na história deste homem, tal como narrada pelo próprio às autoridades, relato acessível no arquivo digital da Torre do Tombo.

1:1

Uma noite céu se abriu, pastor grande fala assim, o que não cumpre estado não pode cumprir também Deus, primeiro cumpre palavra com superior, depois cumpre mandamento, não roubar, não matar, palavras boas pastor grande falou.

1:2

Sou homem de Xai-Xai, depois vivi na Munhuana, jovem andava sempre vadio, na malandrice, bebida, roubo, fumo, não sei lá, coisas assim, vida má, coração alegre do vinho, coração sujo de maldade.

1:3

Na igreja católica com o padre não fazia não. Padre sempre comigo, mas ele sai e coração puxa maldade, ia só, nem pensa, nem pai, nem mãe, ia, bebia tontonto muito, até não era eu, depois faz maldade, malandrice, muito.

1:4

Um dia polícia leva Kossa na esquadra, bate neu e noutros lá de Baputo, amigos sim, eu chama amigos, e muzungo bate mais, pregunta tudo, eu não pode dizer porquês, tudo é maldade no coração, polícia não vê, bate só.

1:5

Dias no escuro, pão, água, pão, água, água, tristeza grande no corpo, raiva no coração, nem sol vi, só quando fui no barco.

1:6

Vai pra São Tomé. Fui. Longe, longe. Ninguém queria não ir. Antes, pai veio, ardeu nele raiva, dor, deste doença no coração da tua mãe. E chorei, chorei tudo. Sangue até chorei. Quando bebida e malandrice, quando vadio, não lembra pai, não lembra mãe. Só vontade suja. No barco, então, doeu a mãe no espírito, doeu pai velho, pai escupiu no chão, filho ruim, falou. E fui longe.

1:7

Também tem filho, mãe levou ele no mato, só vi nem uma vez, parecido com o pai, parecido, parecido, diz prima lá no Sul, olhos igual, diz, já no ir longe, lembrei menino, no pó, meu filho. E chorei ainda.

 

 

1:8

Joei muito na viagem, barco anda assim, uou, tudo fora, quase mesmo o xicuembo, nem dava não pra cantar. Deus eu não queria saber então. Da Bíblia, da palavra, sei só de padre. Nem história do homem na barriga do peixe. Queria conhecer fim da água. Padre diz que é pecado dar morte assim, de vontade.

1:9

Em São Tomé frio não, só chuva, todo o dia chuva, sempre molhado de chuva, água na roupa, no corpo, muita água. No escritório preguntaram minha arte, e eu sabia de motorista e soldado, e levaram eu e tantos na roça, lá no cimo, Montmar. Longe não era. Terra pequena não tem longes.

1:10

Homem diz que roça é gente boa. Não sei. Gente boa o quê, muzungo? Nada. Gente boa na vida sempre te bate e escope, esquece gente boa, pensa eu, sobe na roça. Gente boa de falar, lê Bíblia, ouve padre na missa, depois tem ódio só, ódio não sei de quê, só vontade de mal.

1:11

É o coração, senhor. Entra maldade no coração e a mão cai no mal, homem nem quer fazer, mas coração manda. Coração manda, senhor.

1:12

Na roça bem de noite. Mortos era como. Roupa, comidas qualqueres, colchão só sacas que patrão dá. Nem nada de dormir. Chora nada pra outros não ver. Outros conheci outra vez, da nossa terra, do nosso Sul, então chorei quando olhos em António da minha terra, família quase, chorei tudo, sem vergonha de homem. Só alegria.

1:13

Patrão vem, tudo bem, sei, e não preguntava nada, só tem de trabalhar, no cacau, coconut também, isso já na roça que é lá Montmar. Compra roupa, guarda dinheiro, na horta cada uns planta mamão, tomate, o que quer.

1:14

Domingos não trabalha, de manhã uns anda longe na igreja, nos longes de terra pequena, bem lá depois da serra. Padre nós chama pastor, branco, lê Bíblia e livros de muita letras, no fim, gente esquece e quer ser homem.

1:15

Queria muito mulher, sou homem. Lá mulher fica com um homem só, se não fica, homem faz ferida no outro, inspetor não gosta, avisa mulher, se quer um homem, é um homem só, se não é vadia.

1:16

Coração de homem é forte se quer muito. Coração sempre quer maldade, né? Mulher na roça havia, quatro só, uma eu quis muito, bela de parecer, deita com homens e eu quer ela pois muito tempo não tinha mulher, e noite garrei ela de braço, na força, e tomei ela, não diz nada, no chão mesmo, ali, fui homem, depois veio tristeza, ânsia da terra, chovia ainda, sempre chuva, e cabeça só no pai, mãe, filho lá no mato, a Deus jura nunca mais maldade, nunca mais malandrice, e bebida veio fora ali mesmo e indormeci até dia de trabalhar na roça.

1:17

Fui no pastor branco, lia palavras boas, não quero mais ser mau, ele falou, Deus vai tocar teu coração, homem, e leu palavras do livro e verdade era, Deus amanhã tocou meu coração.

1:18

Houve milando com forros. Eles roubava, não obedecia estado nem patrão. Veio pastor grande, maior, e falou, o que não cumpre estado não pode cumprir também Deus, e matar até? Palavra primeira é estado, palavra de estado é que manda, se estado diz mata aquele, mata porque palavra de estado manda e Deus já falou tudo, não fala mais. Se homem mata de vontade, é pecado. Se estado manda matar, é palavra mais que Deus, homem obedece e não é pecado.

1:19

Noite funda, polícia vem, eu, outros, em São Tomé de castigo, nus inteiros, veste e vem, aonde era de ir não sei. Só depois polícia falou que é governador que chamou.

1:20

Guerra é assim: contra forros, nativos da terra, se vê inimigo é inimigo, homens contra lei, não obedece estado, inimigo da lei, inimigo da bandeira. Jurei bandeira ainda lá no Baputo. Tinha dever. Peguei arma e matei. Quantos não sei. Todos forros. Do nosso Sul ninguém não morreu, d’Angola morreu uns, forros muitos. E milando acabou.

1:21

Governador falou muita coragem nessa guerra e deu medalha e gratificação, trezentos cinquenta escudos por portar bem, resolver milando. Desde que eles morreu muito, já ficou com juízo, já não fala mais. Nós cumpre a lei, eles são gatunos, fala mal, chama nós de cambal, nós se queixa, polícia vem e prende, porque nós cumpre dever.

1:22

Em São Tomé vivi bem. Sempre cumpri dever. Um dia levam no mato. Vi luz na cara de homem. Conhecia. Nome de Mano, lhe chamava esse nome, de papel não sei, Mano era nome de chamar. Polícia falou, conheces, não, fala na verdade, diz muzungo, espera, é Mano, falou meu coração de medo, Mano fez maldades, olho grande do polícia do governador, outro fuma, luz na mão, nos olhos do morto quase, Mano tem de pagar maldade, Bíblia é que diz, essas coisas já sei já, pastor grande falou, é lei da Bíblia, então matas Mano.

1:23

Não sou lei, senhor, não sou estado, não posso, polícia do governador diz que estado falou pra matar, mata Mano porque Mano fez maldades muitas, madalas, mulheres, meninos, isso não sei não, sei só de malandrice, mundo fala só que Mano bebe, Mano rouba, falei, não sou mão de lei, não sou mão de estado, sou mão de homem só, tenho meu pecado, no meu coração tem maldade antiga, não atiro pedra, não, senhor, sou só homem de Deus, homem de Deus só pode matar na guerra. Não pede isso. Homem falou assim, não é pedido, é ordem, não obedeces estado, trais pátria, bandeira.

1:24

Não, senhor, falei. Qual é a tua pátria, eu, português, bandeira portuguesa, senhor, e deves obediência ao estado português, né, falei, sim, estado diz pra matar Mano, homem de maldade, agora, e deu arma na minha mão, nunca mataste, nunca, senhor, na verdade, homem matei só na guerra, senhor, na vida matei galinha, matei pacaça, fiz maldade, nunca matei homem, senhor, então mata hoje, é apontar só, dispara e ele já não é, maldade acaba.

1:25

Maldade não acaba nunca, eu não disse. Mano de lágrima, falou língua, não mata, tem filho, nem quatro ainda, outro vem, mata muzungo, nem olhei nele, nem olhei, perdão, Mano, falei língua, estão a falar o quê, perdão, não é mão de homem, é mão de estado, perdoa, Mano, estão a falar mesmo o quê, mata, apertei, ferro entrou no olho mesmo, Mano caiu caído de morte, bem morto, falou polícia, corpo no buraco, chão bebeu sangue, terra por cima, polícia falou, agora canta, e cantou Heróis do Mar.

1:26

Depois na igreja, pastor grande viu coração repeso, falou palavras boas, na Bíblia, falou que é bom deixar malandrice, cumprir a palavra de Deus é bom, palavras que tem que cumprir dez mandamentos e tem que cumprir dever, Deus não quer roubo, nem matar mas tem dever, o que não cumpre estado não pode cumprir também Deus, falou pastor grande.

1:27

Primeiro cumpre estado, né? Cumpre palavra com superior, depois cumpre mandamentos, não rouba, não mata, mas primeira palavra é de estado, palavra de estado que manda, se estado diz Kossa, mata aquele, Kossa mata porque palavra do estado manda e Deus não fala mais não, se mata de vontade é pecado, se estado manda, não é. Matei Mano sem pecado, pastor grande disse palavras e palavras bem da Bíblia.

1:28

Batismo no Natal, 25 de dezembro de 54. Não faz missa, só culto, oração, louvor. Cantou hinos, cantigas do Presidente da República. Esqueci pai, esqueci mãe, esqueci filho no mato. Larguei família, sim, Deus pôs vontade no meu coração, Deus deu naquele dia o coração ficar contente.

1:29

Religião é forte, se é de Deus, toda religião é forte, se diz deixa pai, deixa mãe, e coração fica de alegria, Deus sabe.

1:30

Castigo acabou, São Tomé acabou, chuva acabou. Mar outra vez. Coração era novo. Fui n’Angola, coração mandou, Deus tocou coração, não queria ir pra Munhuana, pra Luanda Deus que mandou, família já morreu no Sul, pra quê ir, vai então, fui só, no coração Deus diz que família morreu, vai só em Luanda. E fui na rua falar palavras de pastor grande.

1:31

Hoje sou madala. Mano não. Morreu de mim lá na ilha da chuva.

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