Pecados
«Há quem seja tocado pela nostalgia apenas ao revisitar velhas fotografias de família, onde se constata que a morte, afinal, estivera desde sempre entre nós, ou os objectos sentimentais que nos recordam um tempo, uma pessoa, uma união. Porém, para mim o tempo reflui ao lembrar-me do armário mural (“de construção em aço inox com uma prateleira intermédia, fechado com portas de correr”) que me custou 600 euros e que vendi por 150 a um tipo que vivia destes negócios de ocasião e que me pagou em notas contadas com modos rapaces de negociante de feira, desapartando-as com um dedo sujo humedecido de saliva. Era acompanhado por um rapaz corpulento. Estacionaram a carrinha à porta do café. Desmontaram e carregaram o material com a ausência de sentimentos dos cangalheiros, e na lembrança do momento em que saíram vejo que o brilho final desse armário arde em mim com o fulgor das paixões humanas. Sinto o mesmo pelo frigorífico (“frigorífico misto branco com congelador e refrigerador”) que vendi à D. Laura, eterna vizinha da minha mãe. De todos os objectos daquele tempo, só não consegui vender uma caixa registadora. As banquetas que sobraram, ofereci-as ao Gouveia para decorar uns apartamentos que ele, sempre com um olho nos negócios, planeava arrendar a turistas. Uma ficou lá por casa e, de vez em quando, o meu filho usava-a como cavalo imaginário. A registadora permanece a um canto do quarto da minha adolescência, em cima de um pequeno móvel, em casa da minha mãe. Há pouco, reencontrei um dossiê com os despojos do meu fracasso: facturas, ementas, guias de remessa, fotocópias de cheques, talões bancários, folhas com o “recebi” e a rubrica do Dr. Nunes da Rocha. Pergunto-me se este memorial imprevisto terá alguma utilidade. A arrumação pode ser uma forma delicada de esquecimento. E, no entanto, as coisas estão ali. Vivas. Regresso a elas como um arqueólogo que já conhece a história. Nada é apenas plausível, hipotético. Aconteceu. Servem como prova os nomes das empresas, dos fornecedores, das ruas onde estacionei o carro, as salas onde fechei negócios, as datas em que autorizei, com a minha assinatura, que a desgraça se materializasse. Só depois desses factos duros regressam as impressões indocumentadas: um cão majestoso, a astúcia tranquila do Gouveia, um papagaio sonolento, o rasto efémero do capote esvoaçante do Toureiro, a memória imaginada de um tigre a passear-se num chão de ladrilhos, o corpo fantasmagórico de Magda e o amor que eu ainda sentia por ela desvanecendo-se em simultâneo ao ritmo de canções melancólicas que ela detestava e das palavras cruas que aprendera a recitar.»
Excerto de Para Mal dos Meus Pecados, publicado na Granta nº 5