A fé intelectualizada em Silêncio
Mais do que a questão de se saber se o Cristianismo poderia prosperar no terreno pantanoso do Japão ou se, prosperando, ainda seria o mesmo Cristianismo ou, ao invés, uma versão de tal forma adulterada e niponizada que já nem poderia ser considerada a mesma religião, o verdadeiro confronto no livro (e no filme) é entre a fé intelectualizada dos padres (nomeadamente de Sebastião Rodrigues) e a fé simples, porém avassaladora, dos crentes japoneses. Para Rodrigues, fé e apostasia são conceitos teóricos. Para os Kirishitan, são experiências. Por isso, a apostasia de Rodrigues é mais expectável e natural do que a apostasia dos camponeses. Ele está mais próximo da visão dos inquisidores que lhes dizem que aquilo não passa de uma formalidade. Ora, aqueles para quem a fé é algo que se manifesta totalmente nos rituais, não há diferença entre a renúncia formal e a renúncia genuína, de coração. Só para aqueles que separam os conceitos – e Rodrigues é um deles – o pisar de uma imagem de Cristo pode ser diferente de pisar o próprio Cristo. Aos camponeses, que tinham sido introduzidos em mistérios como os da transubstanciação, não se lhes podia simplesmente exigir que esvaziassem o acto de pisar o fumi-ye da substância divina da imagem. O corpo de Cristo tanto está na hóstia como no objecto que devem pisar.
A dissonância entre Rodrigues e os japoneses expressa-se de forma mais integral na cena em que, encarcerados, falam sobre o paraíso. Rodrigues faz um esforço para se adaptar à literalidade dos crentes para quem o paraíso não é uma ideia, uma aspiração vaga, é uma realidade imediata que os espera. A única forma que Rodrigues tem de suportar o seu martírio é o de, uma vez mais, o intelectualizar, vendo, neste caso, o seu sofrimento à luz do calvário de Cristo. Esse orgulho e essa vaidade não passam despercebidos aos inquisidores dos quais, na verdade, Rodrigues está bem mais próximo do que dos camponeses. Rodrigues é levado às portas do martírio não pelo despojamento e pela humildade, mas pelo orgulho, pela racionalização. E é precisamente por esse motivo que fica à porta do martírio incapaz de dar o salto (ou mergulho, como no caso de Garupe) de fé.