Uma cena de sexo
Se tiver de pensar numa cena de sexo dos livros de Eça de Queirós a primeira de que me lembro é entre Luísa e Basílio. Luísa é uma daquelas mulheres a quem o casamento reveste de uma segunda virgindade, uma mulher a caminhar com um manto casto pelos ombros. O ambiente em casa de Luísa não é punitivo nem puritano, mas também não convida a exercícios selvagens e indecorosos. Imaginamos o amor matrimonial de Luísa, as suas concretizações, como tudo o que é regulamentar, monótono e missionário. Luísa, apostamos, não se entrega ao marido, abandona-se sem paixão e sem aborrecimento, com competência de funcionária para não denunciar a insatisfação. A chegada de Basílio é um rasgo de incadescência a que não basta arder em modo vela de altar, com aquele fogo brando, constante e inalcançável. Tem de queimar. E Luísa queima-se. O corpo, até esse momento um chão tranquilo, uma cama feita, primeiro aquece, como um corpo que se estende num banho tépido e, depois, incendeia-se. É esse aquecimento sentimental que torna inesquecível a combustão do corpo de Luísa. A sua amiga devassa, cuja influência é temida pelo marido de Luísa, é senhora de um corpo devastado, atravessado por muitas ilusões breves, tornado insensível ao prazer por conta desse desgaste moral. Nota-se um certo engelhamento, uma diminuição da capacidade física para o amor. É um pão de há três dias. A frescura de Luísa, a sua vicejante virgindade moral, apenas levemente irritada pela leitura de romances, é o que transforma aos olhos do experimentado Basílio a priminha banal numa fêmea apetecível. A falta de gosto e de classe, o provincianismo amoroso de Luísa, empresta-lhe ao corpo a graça inaugural dos territórios inexplorados. Há nela uma combinação de disponibilidade e de iliteracia sexual que, num primeiro momento, é mais prometedora do que a sabedoria de qualquer cortesã capaz de conjugar todos os verbos da cama. Luísa não é fome, é vontade de comer. Então chega essa cena tão arrojada e tão sugestiva, tão aguçada e tão subtil, em que o libertino Basílio culmina o seu repertório tropical com a execução de um cunnilingus que, independentemente dos méritos técnicos, marca um momento de viragem no adultério de Luísa e no desenvolvimento do romance. É o ponto de não retorno. A partir daqui Luísa não pode voltar para trás. Até então, era Eva em diplomáticas, mesmo que já carnais, conversações. Naquele momento, a vontade de comer dá, finalmente, a dentada na maçã. E começa a tragédia.
Umas páginas atrás, testemunhámos o primeiro êxtase. É um êxtase inocente, cândido, juvenil, causado pela leitura de uma carta (não é de estranhar visto que é através da leitura que Luísa está habituada a experimentar esses sentimentos incomuns). Mas em toda a inocência esse breve parágrafo está carregado de mais erotismo do que as futuras (e, a esta escala, explícitas) descrições. O sentimento descrito por Eça é o de um corpo na ressaca do êxtase físico e não uma alma a comprazer-se num banho sentimental. É aquela carta, são aquelas palavras que desfloram Luísa pela segunda vez, que rompem o selo da sua virgindade matrimonial. A imagem do corpo num banho tépido remete também para uma ideia de prazer auto-infligido. A leitura da carta equivale a uma cena de masturbação (como bem sabemos, a leitura é uma forma apurada de masturbação). Mais tarde, temos o clímax da licenciosidade. Basílio vai longe demais. A Luísa, por muito voluntariosa que seja, falta-lhe o estofo da cortesã. Aquele gesto precipitado e inevitável descobre-lhe lamentavelmente as insuficiências . Quando, no fim, Basílio deplora, na conversa mais porca da literatura portuguesa, o ridículo de Luísa, já após a morte desta, é que sentimos o quão longe aquele comportamento estava da verdadeira vocação de Luísa.